Bens Culturais e Espiritualidade Franciscana: ou por onde começar?

Bens Culturais e Espiritualidade Franciscana: ou por onde começar?

Figura da Capa: Maestro della Croce n. 34 degli Uffizi e Maestro di Santa Maria Primavera.
San Francesco e otto storie della sua vita. Museo Civico Pistoia, circa 1255 [2].

Na história da Ordem dos Frades Menores, ao se trabalhar com o campo do patrimônio cultural franciscano é inevitável que venham à memória três figuras essenciais da primitiva fraternitas. A primeira é, como deve ser, afigura do próprio Francisco de Assis (1182-1226) que no início de sua conversão – à grosso modo – foi um “restaurador” de igrejas que se encontravam esquecidas do verdadeiro cuidado e do devido zelo ou, ainda, em completo estado de ruína.

Nesse período de sua vida, o jovem Francesco di Pietro di Bernardone buscava um caminho que desse sentido à sua existência e sinais palpáveis para o sempre desafiante processo de discernimento de um projeto de vida. Atravessando essa fase de angústia e busca, Francisco colocou suas mãos à obra e reconstruiu ou restaurou ao menos três igrejas da cidade de Assis: a capela de São Damião [3],a capela de São Pedro [4] e capela da Porciúncula [5], coração pulsante do originário franciscanismo.

Consolidada a primeira conversão, o agora Frei Francisco de Assis ampliou seu olhar e se ocupou em despertar as consciências adormecidas para o cuidado com todo tipo de materialidade sagrada. Agora, Francisco também começou a “pregar” acerca do respeito e do zelo devidos para com as palavras sagradas da Escritura cristã, ornamentadas nos códices manuscritos ou em pergaminhos avulsos [6].

Frei Francisco, seus frades e uma multidão de laicos imbuídos do mesmo ideal zelaram pela limpeza das igrejas [7] e pela dignidade dos ambientes reservados ao “Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Os irmãos e irmãs franciscanos levaram aos templos – sobretudo os indignamente preservados – preciosas píxides [8] para o acondicionamento adequado e respeitoso da Eucaristia.

Essa afeição franciscana pela materialidade sagrada foi aprendida e cultivada também por Clara de Assis (1194-1253), segunda figura a ser destacada na primeva fraternidade. Clara e suas irmãs do Mosteiro de São Damião, em meio ao labor de uma profunda, intensa e autêntica vida espiritual, costurava delicados corporais para a proteção do Santíssimo Sacramento em capelas de Assis e arredores [9].

A terceira figura que merece nosso reconhecimento por seu cuidado pelo “patrimônio cultural franciscano” é Frei Leão, um dos primeiros e mais fiéis companheiros de Frei Francisco de Assis. O frade, confidente e secretário de Francisco, guardou zelosamente o Breviário – que outrora pertencera a Francisco e por ele fora devotamente usado – e no livro de orações escreveu uma rubrica explicando e resguardando sua origem preciosa.

Frei Leão portou junto ao seu hábito os três únicos escritos autógrafos de Francisco de Assis que se que conservam até hoje: a Chartula di Assisi– que contém a Laudes dei Altissimi e a Benedictio Fratri Leoni data –guardada no tesouro do Sacro Convento de São Francisco em Assis (Figura 1 e 2)e a Carta ou Bilhete a Frei Leão, custodiado pela Catedral de Espoleto na Itália.

Figura 1
Figura 2

Figura 1 - FRANCISCI ASSISENSIS. Laudes Dei Altissimi. Lado carne1224. Pergaminho. 13,5x10cm. Basilica di Assisi.
Figura 2 -FRANCISCI ASSISENSIS. Benedictio Fratri Leoni Data. Lado pele. 1224. Pergaminho. 13,5x10cm. Basilica di Assisi.
Fonte: Pelegrinelli, 2019 [10].

As iniciativas de Frei Francisco de Assis, o zelo de Irmã Clara de Assis e das irmãs do Mosteiro de São Damião e o cuidado apaixonado de Frei Leão na preservação desses objetos-relíquia das origens do franciscanismo manifestaram no passado –e apontam para o presente – algumas atitudes fundamentais para o serviço de preservação do patrimônio franciscano.

No ofício da preservação e salvaguarda do patrimônio cultural – material ou imaterial – devem observados três fatores importantes para qualquer iniciativa no campo da preservação do patrimônio cultural franciscano: a sensibilidade quanto à necessidade de conhecer o patrimônio em suas múltiplas expressões; o afeto pela história e memória dos sujeitos, dos objetos, das Custódias e Províncias; e a valorização dos bens culturais como um importante instrumento de identidade e espiritualidade.

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Frei Adriano é Licenciado em Filosofia, Bacharel e Especialista em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Especialista em História da Arte Sacra pela Faculdade Dom Luciano Mendes; em Ciências da Religião pela Faculdade Única e em Espiritualidade Franciscana pela Pontificia Facoltà Teologica San Bonaventura. Mestre em Artes pela Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na linha de Pesquisa Preservação do Patrimônio Cultural. Pesquisador do grupo: Arte Sacra Contemporânea: Religião e História do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP-LABÔ. Frade da Província dos Franciscanos Capuchinhos de Minas Gerais (PROCAMIG).
[2] Fonte: https://www.cbcew.org.uk/launch-of-the-st-francis-of-assisi-exhibition-at-the-national-gallery/. Acesso em 15 de setembro de 2025.
[3] Cf.
Vita Prima 18, Vita Secunda 11; 13, Legenda Maior 2,7 e Legenda dos Três Companheiros 21; 24.
[4] Cf.
Vita Prima, 21 e Legenda Maior 2,7.
[5] Cf.
Legenda Maior 2, 8 e Legenda dos Três Companheiros 32.
[6] Cf.
Legenda Maior 2, 6.
[7] Cf. Segundo Espelho da Perfeição 56-57 e Compilação de Assis 60.
[8] Píxide: vaso sagrado em que se guardam hóstias consagradas.
[9] Cf. Processo de Canonização 1,11; 2, 12; 6,14; 9,9; Legenda de Santa Clara 28 e Bula de Canonização 12.
[10] Cf. PELEGRINELLI, André Luiz Marcondes. Uma montagem caligramática do século XIII: a
Benedictio Fratri Leoni Data de Francisco de Assis. Antíteses, [S. l.], v. 12, n. 24, p. 646–676,2019, p. 654. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/38019. Acesso em: 15 set. 2025.

Autor:
Frei Adriano Cézar de Oliveira, OFMCap
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