XXIII Domingo Comum - Homília Dominical

XXIII Domingo Comum - Homília Dominical

O Evangelho nos narra que Jesus, Nosso Senhor, cruza fronteiras, se faz distante de sua região, se faz presente em terras pagãs. É por aquelas “bandas” que termina por encontrar o “surdo-mudo”. Não sejamos receosos, deixemos que o Senhor nos encontre, nos visite, mesmo que estejamos longe e distante, em terras pagãs, isto é, vivendo meio distante de Deus, longe de nossa Origem, persistindo em nossa teimosia, em nosso pecado, e quem sabe cheios de desesperança, de tristeza e de incredulidade.

- “Ora, apresentaram-lhe um surdo-mudo, rogando-lhe que lhe impusesse a mão”. Apresentaram-lhe, conduziram o surdo-mudo até Jesus. Vale lembrar que um surdo-mudo pode caminhar, tem essa capacidade, mas não caminha por conta própria até Jesus. Sair de uma surdez é uma boa coisa. Começar a falar e bem se expressar também trazem alegria e sensação de realização. Não deixa de ser estranho o fato de o surdo-mudo não caminhar, não ir ao encontro de Jesus por conta própria, pois ele tinha essa capacidade, tinha “boas pernas”. Vem em mente as tantas oportunidades que temos para a melhoria de nós mesmos, mas que deixamos “pra lá”, para depois. Parece até que alimentamos um espírito mau que nos faz pensar não sermos capazes de superação, de “sair do atoleiro”. Infelizmente tantas vidas são vividas pela metade e até perdidas por causa da preguiça espiritual, da devassidão, da mentira e dos vícios. Agora podemos entender a frase de um grande escritor: “Só existe um grande pesar: o fato de não sermos santos”.

O surdo-mudo parece resignado à própria condição de surdo-mudo. Resistia em ficar bom assim como tantos de nós, tal como aquela recém-casada que de vez em quando caia doente.... assim sua mãe vinha lhe visitar, ou seja, não conseguia ou não queria sair da dependência da mamãe. O surdo-mudo ganhava alguma coisa com aquela surdez: a “tranquilidade” nefasta de viver sem interagir, sem se comunicar, sem dialogar assim como tantos de nós fazemos e passamos a viver trancafiados na vida sem nenhum encontro significativo na vida ou vivendo como que em gueto, longe e distante, evitando afrontar situações e diálogos que exigiriam uma saída do marasmo e da letargia. Surdos para a vida, surdos e mudos para as pessoas. No entanto, a vida quer viver, o homem foi feito para se comunicar com os demais e com o Senhor, e, assim, o surdo procurará “paliativos” para sobreviver com a sua falta de encontro, comunicação e escuta. Talvez um calmante ou um romance, talvez um alucinógeno ou uma temporada na academia, talvez uma seita ou uma diversão de vez em quando, talvez uma fantasia ou uma mania de grandeza. Porém haverá ocasião em que a angústia virá à tona, não se pode camuflar por tanto tempo. No fundo, o surdo-mudo traz consigo a demanda de escutar e falar: encontrar alguém, desejar entrar em comunicação, ter amigos de verdade. Por não falar bem o homem encontra-se travado: não consegue expressar o desejo, o pedido de reconhecimento, o pedido de amor, de amar e ser amado.

Para sermos precisos, o homem não é completamente mudo. É mais ou menos um gago, isto é, fala com dificuldade. Fala alguma coisa, vive de alguma maneira. Mesmo não conhecendo a Jesus o ser humano tem a própria consciência, a própria razão e religião que orientam sobre como viver e como morrer. Mas não basta, pois importa falar corretamente, isto é, em Jesus de Nazaré temos o próprio Deus entre nós que verdadeiramente nos ilumina e nos dá uma luz maior sobre o viver e o morrer, o sentido da vida.

- O Evangelho nos narra que em socorro, em ajuda, do surdo-mudo apareceram pessoas “engajadas”, missionários que tendo conhecido a Luz que é Jesus, desejam que outros também o encontrem. Jesus disse " Efeta!" O Papa nos diz "Ide!” Em outras palavras, abram-se, descortinem-se, saiam de si, vão ao encontro do outro e continuem, perpetuem, e como embaixadores ( cf. 2Cor 5,20), em nome de Cristo, promovam o “Éfeta” em outros tantos surdos-mudos. Quando, um dia, nos sentirmos verdadeiramente filhos do Pai, sairemos à procura dos irmãos e irmãs que ainda não o conhecem. Fica a provocação para as nossas comunidades, paróquias e dioceses tão carentes de fervor missionário.

- “Jesus tomou-o à parte dentre o povo, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe a língua com saliva” (v.33). Jesus se afasta um pouco da multidão e leva consigo o surdo-mudo. Claro que todos nós somos mais ou menos surdos-mudos. Sem escutar a Palavra e tantas outras palavras bonitas de carinho, esperança e perdão, escutamos desde criança tantas palavras de revolta, de raiva, de desespero, de mentiras, de desprezo, de enganação, de falta de respeito. Há, sim, a “fala do mundo”, a qual devemos nos afastar caso queiramos ouvir e falar bem. Agora entendemos porque Jesus levou o surdo-mudo para longe da multidão. Com Jesus aprendemos a abandonar certa fala ou maneira de falar, certas convicções, pensamentos, opiniões e ideias. Tal abandono não se faz tão facilmente. Além da graça de Deus, precisamos também vencer a si próprio, se corrigir.

Jesus leva o surdo-mudo para fora da multidão a fim de que ele não permaneça um mero anônimo, como se dissesse ao surdo-mudo: “Você é importante, você é único e tem valor único, volte a escutar a voz do Alto e passe a falar corretamente, isto é, a bem conduzir sua vida. Não se esconda na multidão, no “mundão”, recupere o seu rosto e o seu nome, sua vocação e o seu chamado e o motivo pelo qual foi criado por Deus”. Caso não queiramos se afastar do pensamento da maioria, caso não aceitemos o convite de Jesus de se afastar da multidão, ficaremos na mesma, nos mesmos pensamentos, atitudes e entendimentos. Os dias se passarão, passaremos pela vida, e nada de novo entenderemos, não conheceremos a Verdade, o Caminho e a Vida, pois fincados ficaremos em “meias-verdades”.

- “... pôs-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe a língua com saliva”. O surdo-mudo foi tocado, impressionado, pela pessoa magnânima de Jesus, o Emanuel, o Deus conosco. De fato, existe um tocar que nos toca. Há pessoas que passam em nossas vidas e deixam boas marcas, que facilitam o nosso viver e o nosso encontro com o sentido da vida, com a fé, a esperança e a caridade. Fé é ser tocado por Deus, pois sentimos que Ele é nossa rocha firme, nosso amém, porto seguro, nosso refúgio maior. Naquele dia o surdo-mudo foi tocado e Jesus, para sempre, marcou, com o toque, a vida dele.

Se eu paro para pensar, posso afirmar que a minha vida hoje depende de como fui tocado por dentro. Se dentro de mim se alojou um bom toque, certamente conservo mais alegria e esperança, mesmo diante das dificuldades. Infelizmente há também toques que deixaram marcas que nem faz bem lembrá-las. O toque de Jesus comoveu o surdo-mudo, levou-o a escutar e a falar.

Escutar e falar: escutando saio da minha ignorância e absurdo. Falando, eu entro em comunicação, supero a solidão. A existência não será mais a mesma, será melhor, pois todo coração anseia por recepcionar os outros (escutar) e anseia por falar, por ter voz e vez, ser reconhecido, amar e ser amado.  O toque de Jesus é seu amor manifestado, é o contrário do “não me toque”, da indiferença que mata e humilha. A fé é um toque interior, é experiência direta de Deus, assim como toda experiência de comunhão é um toque interior, profundo e vital.

O toque é muito importante, pode ser decisivo na vida de alguém. Há pessoas que fizeram tantos males, devido também a rejeições e traições sofridas: foram tocadas pelo mal. E há pessoas que tanto bem fizeram porque um dia foram tocadas por um bom olhar, por umas belas palavras, por uma acolhida verdadeira.

- “... pôs-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe a língua com saliva. E levantou os olhos ao céu, deu um suspiro e disse-lhe: Éfeta!, que quer dizer abre-te!”. Para os antigos, o espírito de uma pessoa estava presente também na saliva. Por ser saliva de Jesus, Nosso Senhor transmite ao surdo-mudo o seu Espírito Santo. A saliva também é símbolo da Palavra de Deus, por isso podemos afirmar que a Palavra gera em nós o Espírito Santo que nos tira de toda surdez e gagueira. Não podemos reduzir a nossa fé, o santo Evangelho, a uma lista de códigos de condutas (por mais que seja necessária tal lista), pois a Boa Notícia (o Evangelho) é comunhão de uma pessoa que nos comunica a si mesma, o seu amor, a sua vida, o seu espírito. O Evangelho é algo por receber, é “Graça” antes de qualquer código de conduta.

Quando na última ceia Jesus anunciou seu gesto extremo de amor, a Cruz, a doação da própria vida, ele elevou os olhos (“Tomando o pão, deu graças – aqui se eleva os olhos - , partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: ‘Isto é o meu corpo dado em favor de vocês; façam isto em memória de mim’”). Elevar os olhos e suspirar são ações que revelam movimentos da alma, demonstram grande esforço e dedicação extrema de Jesus. O surdo-mudo diante de tanto amor se rende. Vendo como Ele nos ama e que dá a vida por nós é que se abrem os ouvidos, é que escutamos suas palavras. E, de repente, descubro que eu sou procurado por Ele, que Ele dá sua vida por mim. Quando eu descubro isso, o mundo se enche de cor, de encanto, de sentido e de alegria, aconteça o que acontecer. Eu passo a me ver como um dom deste amor porque Deus é amor absoluto por mim. “Ninguém tem maior amor do que aquele que doa sua vida pelos amigos”. Naquele dia o surdo-mudo não conseguiu ser mais o mesmo....

Jesus se concentra, sabe que tem uma grande obra por fazer, precisa restaurar a criação daquele homem, e por isso suspira, deseja, almeja. O surdo-mudo tinha condições de ouvir e falar, mas não ouvia nem falava. E se Jesus não tivesse “aparecido”? Carregaria para sempre aquele fardo, aquela vida pesada, tapada e mesquinha? Carregaria para sempre aquela agonia e inquietação de ser capaz e ao mesmo tempo não manifestar a capacidade que trazia dentro de si?

"Éfata!". Certo um homem se negava em pensar em constituir uma família porque sua primeira mulher não lhe disse a verdade, não disse que não era virgem. E fechado, surdo, para uma nova vida ficou. Por vezes encontramos irmãos que não se perdoam por feitos do passado. Ficam surdos, não se abrem ao perdão, a uma nova vida. Certamente nossas famílias e comunidades seriam mais ricas se nos deixássemos receber o “Éfata” de Jesus, pois cada um de nós daria o seu contributo, sua fala, sua riqueza, sua qualidade. “Éfata”, isto é, recebe o meu espírito, nos diz Jesus ainda hoje. Éfata”: abre-te ao novo, afasta-te de prisões, desata nós que aprisionam, abre mão do que te escraviza, larga o que te impede de falar e escutar, corta vínculos nefastos, começa e inaugura uma nova história, não abafe o botão em flor, desabotoa a camisa que faz mal. Se preciso, confesse, desabafe. “Desperta tu que dormes”.

- “No mesmo instante os ouvidos se lhe abriram, a prisão da língua se lhe desfez e ele falava perfeitamente. Com “ouvidos abertos e língua solta”. Aquele que era surdo-mudo passou a falar. Falava exprimindo e vivendo aquele amor recebido pelo toque, pelo olhar, pela saliva e suspiro de Jesus. Corretamente falava: não há mais fala de agressão que cala os outros, de domínio que não deixa o outro viver, de esperteza que visa só vantagens, de “enrolação” e enganos. Nasce a Palavra que é correta, que aproxima e cria laços, vínculos.

Autor:
Frei João Santiago, OFMCap
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