Homília Dominical - XXVIII Domingo Comum

Homília Dominical - XXVIII Domingo Comum

"Tendo ele saído para se pôr a caminho, veio alguém correndo e, dobrando os joelhos diante dele, suplicou-lhe: "Bom Mestre, que farei para alcançar a vida eterna?" (v. 17).

- Esse “alguém”, que São Mateus apresenta como sendo um jovem, pela forma que é apresentado (“correndo”, ajoelhando-se e suplicando) nos faz lembrar dois personagens dos Evangelhos, isto é, o endemoniado geraseno e um certo leproso (cf. Mc 5, 1-14; 1, 40-45). O primeiro andava sempre, de dia e de noite, clamando pelos montes, e pelos sepulcros, e ferindo-se com pedras: situação desoladora, oprimente e dilacerante. O segundo carregava consigo aquela marca da impureza e do abandono por parte de Deus. Certamente o jovem apresentado neste Evangelho não se encontra bem, mas atormentado, inquieto e dilacerado em sua alma. O tormento e a perturbação que lhe roubavam a serenidade por certo deveriam ser tremendos. Dizemos isso pelo fato dele ir à busca de uma solução. Quando um mal-estar é tolerável, quase sempre preferimos se virar sozinhos, mas quando decidimos pedir ajuda é porque se chegou ao limite do tolerável.

- O jovem (digamos assim) se dirige a Jesus como “bom Mestre” ou “Mestre insigne”. Podemos entender sua aproximação como de alguém que vê em Jesus a última tentativa de resolver um drama e problema interior, como se a outros mestres já tivesse ele se dirigido, mas sem sucesso, sem solução. Talvez um dos mestres tenha pedido para ele rezar um pouco mais, outros tenham indicado práticas de penitência ou de esmola. Na verdade, porém, podemos ver nesta sua expressão (“Bom Mestre”) uma forma de bajulação quase que esperando que o seu mal não seja apontado pelo Mestre Jesus, como acontece com aqueles que vão ao médico e esperam que o médico não lhe proíba de largar isso ou aquilo, não proíba de comer certos alimentos ou que não mande mudar o estilo de vida, mas que lhe prescreva um remédio “milagroso”.

- O jovem entra em questão, perguntando: “... que eu farei para herdar a vida eterna?”. Bom, já que ele se dispõe a fazer algo.... Jesus aponta o que ele deve fazer: “... não mates; não cometas adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe” (v. 19). Os mandamentos elencados por Jesus não são todos e traz um novo mandamento. Primeiro, não cita os “deveres para com Deus” (Amar a Deus sobre todas as coisas, Guardar o dia santo, Não tomar seu santo nome em vão) para mostrar que damos prova de amor a Deus cumprindo nossos deveres ou os mandamentos para com o próximo (Não matar o próximo, nem furtá-lo, nem adulterar, etc.). O novo mandamento que apresenta para aquele jovem quase que revelando o motivo de seu tormento é: “... não cometas fraudes”, que algumas Bíblias traduzem como “Não prejudicarás a ninguém”.

- É bem verdade que o jovem irá se escusar, tentando se sair, respondendo: "Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha mocidade” (v. 20). Tudo bem. No entanto, Jesus, de outra forma tentará trazer a verdade à tona, já que não conseguiu na primeira tentativa.Vejamos....

- “Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe: ‘Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me’” (v. 21). Todo olhar é uma comunicação: Jesus comunica-se com ele com o olhar. Um olhar pode ferir e pode acalentar, pode acatar e estimar ou desprezar. Um olhar pode causar alegria ou tristeza e desdém. Há a ternura de um olhar que nos faz perceber que fomos compreendidos: um olhar que alcança o coração. Jesus viu a alma daquele jovem, perscrutou o seu coração, e não só, pois, além disso, amou a ele olhando-o. Houve comunicação amorosa, o olhar falou e perguntou: “Jovem, existe outra vida, a vida presente neste olhar”; “Frauda-se o próximo porque não se ama o próximo”; “Caso tu, ó jovem, sigas este olhar que te olha terás este olhar que te olha, este amor que não frauda”; “És mais do que tudo o que possuis, não te reduzas a estas coisas”; “Possui de verdade quem cria família e comunidade com os bens que possui e quem não partilha, não possui, mas é possuído”; “Tu, ó jovem, preferes os bens que fraudastes ou este olhar que te olha?”.

- “Ele entristeceu-se com estas palavras e foi-se todo abatido, porque possuía muitos bens” (v. 22). Vemos aqui um homem falido, atolado numa espécie de areia movediça e incapaz de se sair, incapaz de amar a Deus, a si mesmo e ao próximo. Ele foi embora abatido, pois de um lado seu coração almejava Vida e se mostrava aberto ao Infinito, e do outro lado se mostrava subjugado pelo fascínio dos bens e das posses, por uma situação humanamente impossível de ser libertada. O motivo? Bom, o motivo é que “possuía muitos bens”. Os bens ou dinheiro na Bíblia tem uma forte ligação com uma divindade chamada “Mamom”. De fato, os bens ou o dinheiro tem um poder enorme sobre o homem, tem o poder de possuí-lo e dominá-lo, tem a força de nos tirar do serviço de Deus (cf. Mt 6, 24), impossibilitando-nos de herdar o tesouro maior: o próprio Deus e o seu Reino. Jesus tinha conseguido libertar um homem possuído por uma legião de demônios, mas este jovem possuído pelo demônio “Mamom”, Jesus não consegue de imediato.

- “E, olhando Jesus em derredor, disse a seus discípulos: ‘Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos!’" (v. 23).  Jesus constata, não julga. A constatação é que o pobre ser humano nem imagina em qual cilada cai ao se tornar rico de bens. Como escapar do demônio “Mamom” que deixa o pobre ser humano escravo dos bens e insensíveis para com os demais? Marcello Candia, grande e próspero industrial encontrou uma maneira de enganar o “diabo Mamom”: criou uma fundação mantida pelas suas empresas que visava ajudar pessoas em dificuldades. Marcello tinha um sonho: que cada pessoa ajudada por sua fundação também ajudasse outras pessoas, isto é, não fosse só ajudado materialmente, mas que se tornasse uma nova pessoa, um cristão de verdade que se torna livre para amar, livre de “Mamom”.

- “Os discípulos ficaram assombrados com suas palavras. Mas Jesus replicou: ‘Filhinhos, quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que põem a sua confiança nas riquezas!’”(v. 24). Os discípulos ficaram assombrados, estarrecidos, boquiabertos, sem palavras, pois imaginavam que um jovem rico e até certo ponto bondoso ( de fato, cumpria vários mandamentos) não corresse o maior perigo existente para um ser humano: perder-se, não herdar o Reino dos Céus.

- “‘É mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus’. Eles ainda mais se admiravam, dizendo a si próprios: ‘Quem pode então salvar-se?’ . Olhando Jesus para eles, disse: ‘Aos homens isto é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível’” (vv. 25-27).

O tema da salvação é muito sério. O contrário de salvação é perdição. Imagine o leitor um agricultor que investe tudo o que tem na compra de um terreno, na preparação da terra, no sistema de irrigação, na semeadura. Alegra-se com toda a família e amigos. Espera a colheita. De repente, vem um vendaval, uma enxurrada, uma chuva de granizo, e tudo se perde. Resta só tristeza, decepção, frustração e lamento. Aqui temos um exemplo de perdição. Uma vida falida, gasta e consumida para o nada, sem retorno de alegria e felicidade. Diante de tal anúncio de perdição para os escravos dos bens, os discípulos de perguntam quem pode salvar-se. Jesus anuncia: “Para Deus tudo é possível”. Pedro confirma o que Jesus falou e - podemos imaginar - grita de maravilha e reconhecimento: “Eis que deixamos tudo e te seguimos”. É... eles, os discípulos, conseguiram a libertação de “Mamom”, foram fisgados pelo olhar amoroso e celeste de Jesus. Em Jesus viram “não sei o quê” de tão poderoso que consideraram “lixo” o que possuíam: o impossível aconteceu neles, pois trocaram coisas para irem ao encontro de Jesus e de novos irmãos e irmãos.

- “Respondeu-lhe Jesus. ‘Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de mim e por causa do Evangelho que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no século vindouro a vida eterna’” (vv. 29-30).  Interessante, se formos atentos ao texto, percebemos que se deixa o pai e não se recebe mais pai (“Um só é o vosso Pai”). Não se deixa perseguições e se recebe perseguições.

Outra coisa interessante. Sabemos que a lei do crescimento exige “separação”. Uma criança, por exemplo, só cresce se começa a frequentar a escola, deixando o conforto do lar, do pai e da mãe, nem que seja por algumas horas. Desta forma é que a criança começa a crescer e começa a criar o seu futuro, aprender novas coisas, a criar os seus bons sonhos e aspirações. Fisgados pelo olhar de Jesus todo cristão é chamado a se desembaraçar para conquistar uma nova filiação e paternidade. “É preciso nascer de novo” e “Só entra no Céu quem for como uma criança”, disse Jesus. O novo nascimento, a infância espiritual, é uma novidade de vida quando uma pessoa começa a crescer para o Reino olhando o olhar amoroso de Jesus tal como um bebê começa a sair de si olhando a mãe e o pai que olham também para ele. Sem o novo nascimento jamais encontraremos nossa própria origem e fonte, mas continuaremos “amarrados” e “abafados” pelo mundano que de alguma maneira herdamos desse mundo marcado pela concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida.

E o fim dele, qual foi? O Evangelho não nos narra, mas pelo menos um bem Jesus fez com ele. O olhar de Cristo não o deixou ir tranquilo, ele não ficou acomodado no mal. É um drama sentir-se dividido entre o apego aos bens e o olhar amoroso de Jesus que nos chama, mas é uma tragédia ficar sereno e tranquilo e ao mesmo tempo viver defraudando o outro, sendo possuído por “Mamom”, escravo dos bens.

Autor:
Frei João Santiago, OFMCap
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