Os livros que eu nunca li‍

Os livros que eu nunca li‍

Os livros que eu nunca li

Aproveito a ocasião do Dia do Livro para tornar pública uma paixão que eu nunca ocultei de

ninguém: sou viciado em livros. E não é vício novo. É antigo. Vem desde a infância. Aos sete

anos, ganhei meus primeiros livros. Só aos sete? Sim. Livro, lá no interior, para uma família

pobre como a nossa, era um luxo! Estava eu no Segundo Ano do Primeiro Grau (era assim

que se dizia na época), e a professora Maria Polesel Didoné, minha primeira professora, pediu

aos pais que comprassem livros para seus filhos, alunos na brizoleta da Linha Aimoré, a

Escola Estadual Rural João Ghellere.

Na primeira ida à cidade, meu pai voltou com três livros. Capa dura, coloridos, papel branco...

Devem ter custado caro os meus três primeiros livros: “João e o Pé de Feijão”, “Os Três

Porquinhos” e “Chapeuzinho Vermelho”. Três clássicos da Literatura Infantil certamente

recomendados pela vendedora da Livraria Parisi, a única existente na época em Veranópolis.

Não sei quantas vezes li e reli aqueles três livros. Em seguida começaram a circular entre nós

os gibis da Walt Disney. Fiz meu up grade com a leitura do “Príncipe Valente” do Harold

Forster. Aí o vício estava instalado e não parei mais. Lia de tudo. O que viesse pela frente.

Comecei a exercitar meu discernimento literário com a professora de Língua Portuguesa e

Literatura no Segundo Grau, a incrível e inesquecível Professora Ida Sonda Pessin. Professora

com “P” maiúsculo. Ela me apresentou os clássicos da Literatura Brasileira. Jorge Amado foi

minha grande paixão. E na Biblioteca do Seminário estava todo o Jorge Amado: uma longa

fila de livros de capa vermelha que fui degustando um a um, saboreando aquele mundo tão

estranho para mim.

Foi a professora Ida quem me apresentou aquele que para mim é, até hoje, o clássico dos

clássicos brasileiros: “Grande Sertão: Veredas” do João Guimarães Rosa. No final do ano, no

último dia de aula, ela veio até mim, me estendeu o livro e me disse: “Aproveita para ler esse

livro nas férias”. Não li de uma sentada só porque isso é impossível! Mas não conseguia

parar... Foi uma experiência espetacular que só se repetiria em outras duas ocasiões com

outros dois livros: “O Nome da Rosa” de Umberto Eco e o “Ciem Años de Soledad”, de Gabo

Márquez. Uma experiência da qual se aproximaria a leitura de “La Ciudad y los Perros” de

Vargas Llosa, “Waslala” de Gioconda Belli e “La Casa de los Espiritos” de Isabel Allende.

Minha paixão por livros é tanta que as bibliotecas são o meu playground preferido. O cheiro

dos livros é perfume comparável aos das flores do jardim. Passear entre as estantes, um

verdadeiro prazer. Passeando as mãos nos livros enfileirados, me sinto como Mário Quintana

olhando o mapa de Porto Alegre:

Olhos os livros da biblioteca

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Dos livros da biblioteca

Que jamais eu lerei...

O outro lado desta história é que o meu vício virou profissão quando meu tornei professor. E

os livros que antes eram diversão, transformaram-se em instrumentos de trabalho. O que era

prazer, virou obrigação. Não que haja oposição entre as duas versões da paixão. Leio com

prazer o que é obrigação e faço da obrigação um prazer. Mais ou menos como o amante de

vinhos que vira enólogo. Só não leio com moderação! Não me peçam isso jamais... Leio e

sempre lerei com devoção e com tesão.

Até quando lerei? Não sei... Só sei que gostaria de morrer com a cabeça descansando sobre

um livro. Ou com um livro nas mãos. Ou no meio de uma leitura, o livro caído ao lado da

cama, leitura inconclusa de uma vida que se vai.

Hoje, olhando para trás nessa história toda, me faço uma pergunta: e se meu pai, em vez de

ouvir as palavras da professora Maria e comprar meus três primeiros livros, tivesse comprado

e me presenteado com uma arma de brinquedo? O que eu teria me tornado se tivesse ganho,

aos sete anos, uma imitação de um revólver, espingarda ou metralhadora?

É muito provável que eu não teria lido tantos livros em minha vida... E hoje, certamente, eu

não seria professor. Poderia ser algo bem diferente. Talvez Capitão Presidente ou General

Ministro de Estado. Ou simplesmente um miliciano.

Os livros traçam destinos. Tanto os que lemos como os que não lemos. Tenho gratidão pelos

livros que eu li. E tenho saudades dos que ainda não li e ficam na esperança de que um dia

talvez possa ler.

Autor:
Frei Vanildo Luiz Zugno, OFMCap
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