A devoção ao Coração de Jesus: um olhar a partir da espiritualidade franciscana
Foto: Frei Tomás de Olera, OFMCap - por fratommaso.eu
Achei o Coração do meu Senhor, do meu irmão, do meu amigo, o Coração do meu dulcíssimo Jesus. E não hei de adorá-lo? Sim e a ele hei de endereçar minhas súplicas... E assim como eu achei o Vosso Coração ó Jesus amável, que é também o meu, assim também eu Vos suplicarei ó meu Deus. Aceitai, ó meu Senhor, as minhas orações neste santuário de Vossa liberalidade. Melhor ainda, dignai-Vos fazer-me entrar neste Vosso Coração. São Boaventura
A contemplação ao Coração de Jesus está presente em nosso meio desde a Igreja Primitiva. Por muitos séculos, a mística da cruz, ao se falar do sangue e da água que jorraram do lado aberto de Jesus Cristo, estava presente nas reflexões e espiritualidade dos Santos Padres. Esses dois elementos tornaram-se fonte de piedade e de oração.[1]
Um olhar mais humano ao Sacratíssimo Coração de Jesus perpassa por São Francisco de Assis, que tinha profunda devoção à humanidade de Cristo. A Tradição Cristã nos ensina que a Pessoa Divina assumiu realmente a nossa natureza humana, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro humano. Isso significa que Deus, em Jesus, abraçou todas as exigências da encarnação, revelando-se inteiramente na carne.[2]
Em São Francisco encontramos uma vivência íntima dessa relação da Palavra Encarnada e o seu processo de conversão e fundamento da fraternidade. Fragmentos dessa devoção podem ser percebidos nos Louvores de São Francisco, nas diversas cartas dirigidas aos frades e em seu Testamento.
Francisco é aquele que vive os mistérios da Paixão em sua própria vida; viveu com tanto Amor que não coube dentro de si e exteriorizou-se nos estigmas recebidos em seu corpo. Amor vivido e doado com os irmãos a partir da Palavra que se fez carne. Uma vez que "o Senhor lhe deu irmãos, o próprio Altíssimo revelou que deveria viver segundo a forma do santo Evangelho".[3]
Fazendo do evangelho a sua forma de vida e estendendo-a a toda Ordem, a humanidade de Cristo também se revela no simbolismo do coração. São diversas as vezes que a palavra coração aparece na Bíblia. No Antigo Testamento (AT) as pessoas dóceis ou puras eram referidas pelo coração, em hebriaco: לֵב (cf. 1Rs 3,9; Jl 2,13; Sl 51,10). Quem tinha discernimento para distinguir entre o bem e o mal, quem mudava de vida ou mesmo quem buscava a pureza, era considerado como aquele que tinha se voltado ao coração e transformado o seu íntimo. Dessa forma, o coração era concebido como o centro do humano, a razão e o pensamento. No NovoTestamento (NT) o coração, em grego: "καρδιά", se refere a vida interior e suas emoções, também é apresentado como vontade, pensamento e habitação do Senhor (cf. Lc 2,19; Mc 7,21; 1Jo 3,20).
Depois de grandes evoluções do pensamento e transformações filosóficas, passamos a considerar o cérebro como o centro da atividade humana. Todavia, no discurso bíblico, o coração é que tem esse lugar de totalidade do nosso intelecto. É do coração que saem as coisas boas e ruins, é no coração que meditamos e refletimos, é no coração que tomamos nossas decisões. Na Sagrada Escritura o coração não é apenas um órgão cardíaco, mas o ser interior do humano como fonte de todas as emoções e sensações. Obviamente estamos falando de uma linguagem metafórica e não literal, muito comum nos escritos bíblicos. Mas deixaremos essa discussão para depois, já que a nossa intenção aqui é entender um pouco mais o caminhar histórico da devoção ao Sagrado Coração.
Pois bem, é nesse contexto da encarnação e do sentido da palavra coração que se encontra a espiritualidade e a devoção franciscana à humanidade de Cristo, isto é, ao seu Coração. Muitos foram os santos franciscanos que escreveram sobre o Coração de Jesus, dentre eles: Santo Antônio de Lisboa (1195-1231), São Boaventura (1221-1274), São Bernardino de Sena (1380-1444), Beato Tomás de Olera (1563-1631) e Santa Verônica Giuliani (1660-1727). Todos eles adentraram no itinerário do Amor e, na vivência da pobreza, entregaram tudo o que tinham aos mais pequeninos e buscando cuidar do seu interior dedicaram ao ensinamento de Jesus que é "manso e humilde decoração" (Mt 11,29).
São Boaventura enfatizava que o que importa é reaprender a amar e não apenas ficar discorrendo sobre as palavras da caridade. Necessitamos adentrar no Coração de Jesus, o amor infinito. O beato capuchinho, Frei Tomás de Olera, nos indica ocoração como o mistério de Amor de onde surgem dois rios, um de misericórdia e outro como caminho de purificação onde os amigos se unem e aguardam de Deus virtude e perfeição. Tomás de Olera é considerado o místico do Coração de Jesus e podemos perceber tamanha profundidade em seus escritos que diz:
[...]Queria Deus que o homem pudesse ver este amor, em que foi aberto este coração com uma cruel lança e, para manifestar que ele vivia no coração o amor de Deus, saíram sangue e água, que desciam por aquela bem-aventurada humanidade. E se tu disseres que o sangue de Cristo foi sangue de amor com o qual redimiu o homem, sangue este que Cristo difundiu de seu coração após a morte é mais ainda sangue inestimável: foi um extremo excesso de amor, foi o último selo do seu amor."
Beato Tomás de Olera,OFMCap
Quando São Boaventura se tornou Ministro Geral da Ordem Franciscana, ele enfatizou essa devoção ao Sagrado Coração de Jesus dentro dos conventos. Toda a Ordem já contemplava os mistérios do Amor do Sagrado Coração em suas orações internas epequenas celebrações. Por muitos séculos vários frades iam em Missão para diferentes terras levando consigo uma imagem do Coração de Jesus. O próprio brasão da Ordem, inspirado no brasão episcopal de Boaventura, já nos apresenta esses elementos de humanidade, divindade e mística passando pelo itinerário da Cruz.
Podemos inferir que a Ordem Franciscana deu grande contribuição para a preparação e o culto ao Coração de Jesus. Entretanto, o formato de culto que conhecemos hoje,vai se estruturando a partir das visões místicas de Santa Margarida MariaAlacoque (1647-1690). Santa Margarida viveu numa época de intensa influência jansenista. A partir da sua piedade e devoção ela colaborou para uma cotínua transformação de mentalidade na Igreja, passando de uma imagem de um Deus opressor e castigador para um Deus Amor.[4] Suas visões revelavam tamanha afeição e devoção ao Coração de Jesus. Numa dessas visões Jesus apareceu-lhe e disse:
“Eis o Coração que tem amado tanto aos homens, a ponto de nada poupar até exaurir-se e consumir-se para demonstrar-lhes o seu amor. E em reconhecimento, não recebo senão ingratidão da maior parte deles".
O Diretor Espiritual de Santa Margarida deu a ela a orientação para escrever suas visões. Em seus escritos ela relata que o próprio Jesus lhe pedia para ter uma devoção particular ao seu Sagrado Coração. Nesse itinerário, a espiritualidade do Sagrado Coração torna-se um convite para mudança de mentalidade, um novo estilo de vida:
"Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo em vocês" (Ez 36,26).
A história da Igreja nos relata que São João Eudes foi o primeiro a celebrar uma festa propriamente dita ao Sagrado Coração de Jesus. Ele enfatizou essa devoção em meio ao povo, com a autorização do papa Clemente X, criando as confrarias do Sagrado Coração. No século XVIII a festa foi aprovada para ser celebrada na Polônia e em Roma. Já no século XIX a festa é aprovada para toda a Igreja.
O testemunho de Santa Margarida foi tão intenso que unido a devoção já praticada pelos franciscanos e às confrarias do Sagrado Coração, o Papa Leão XIII (que também era franciscano), com a encíclica "Annum Sacrum" elevou a festa à categoria de Solenidade. Na Solenidade do Coração de Jesus, celebramos o mistério do amor e da doação, festa do amor de Deus para conosco.
Portanto, nessa solenidade celebramos a encarnação viva do Amor de Deus, cujo coração decarne é símbolo desse Amor. É desse mesmo coração que recebemos sangue e água que sacia a sede da humanidade e purifica as nossas vidas. Que o meu coração, meu íntimo, eu mesmo, me encontre com o Teu. Que ao encontrar-te possa unir-me inteiramente a Ti para amá-lo a cada dia mais. Pois tú és amor, e quero sempre permanecer em Ti para que possas permanecer sempre em mim.
“Deus é amor! Quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece com ele” (1Jo 4,15).
Referências:
Autobiografia deSanta Margarida Maria Alacoque. Loyola: 1985.
BÍBLIA. Bíbliados Capuchinhos. Fátima: Difusora Bíblica, 2018.
Biografiaresumida de santa Margarida Maria Alacoque. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/santo-do-dia/10/16/s--margarida-maria-alacoque--virgem--da-ordem-da-visitacao.html
Escritosdo beato Tomás de Olera. Suplemento Franciscano da Liturgia das horas.
JOÃOPAULO II, Papa. Encontro de oração para o ato de devoção ao Sagrado Coração deJesus. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/homilies /1999/documents/hf_jp-ii_hom_19990606_elblag.html
LE GOFF, Jacques. São Francisco deAssis. Rio de Janeiro: Record, 2011.
LEÃO XIII, Papa. CartaEncíclica Annum Sacrum, sobre a consagração ao Sagrado Coração. Disponívelem: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/en/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_25051899_annum-sacrum.html
OLIVEIRA, DomOscar de . Sagrado Coração De Jesus. Mariana: Editora Dom Viçoso, 1976.
PAULO VI, Papa. ConstituiçãoDogmática Dei Verbum, sobre a Revelação Divina. Disponívelem: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html.
RAHNER, Karl.Teologia e Antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969.
[1]Missal Franciscano Capuchinho, Solenidade do Coração de Jesus.
[2]Constituição Dogmática Dei Verbum.
[3]Testamento de São Francisco de Assis, 14.
[4]Biografia disponível no site do vaticano.