São Francisco, a Palavra de Deus e o processo vocacional
“Não era um ouvinte surdo do Evangelho”. Assim frei Tomás de Celano, o primeiro hagiógrafo de Francisco de Assis, descreve a relação do santo com a Palavra de Deus. Neste tempo que a Igreja no Brasil celebra o mês da Bíblia, recordemos, a partir desta brevíssima reflexão, de como a Palavra de Deus era conhecida no tempo de Francisco. Como foram suas principais experiências, sobretudo com o Evangelho. E por fim, o que podemos trazer da experiência do Poverello, para o hoje de nossa vida, sobretudo, na perspectiva do discernimento vocacional.
Francisco, a Palavra de Deus e seu tempo
Para começar, parece justo considerar um tanto difícil para nós, pensarmos a relação de São Francisco com a Palavra de Deus. Sobretudo, se buscamos olhar para o seu tempo com os óculos do nosso tempo presente. Para nós, é quase inconcebível um cristão não ter uma Bíblia em sua casa. Embora isso não signifique, infelizmente, um verdadeiro relacionar-se com a Palavra.
No tempo de Francisco não era tão simples o acesso a Palavra de Deus. Os livros litúrgicos e também a Bíblia propriamente dita, eram objetos de alto valor para reprodução. Hoje se tem acesso a boas formações bíblicas, até ao estudo da teologia. Nos séculos do nosso santo isso não acontecia. Até entre os sacerdotes existia uma divisão, no sentido do acesso e do conhecimento (alto clero e baixo clero). Para completar, entre aqueles que era incumbida a transmissão da Boa Nova existia uma forte negligência, seja pelo motivo moral ou até pelo escasso e limitado acesso aos livros sagrados.
Embora Francisco tenha vivido um tempo de grande apelo por conhecer a mensagem das Sagradas Escrituras, seu tempo ainda dava um acento maior na pregação e na liturgia, quando se tratava da Palavra de Deus. Os grandes movimentos que surgiam, das beguinas, dos pregadores e também dos penitentes, buscavam conhecer mais e melhor a Palavra, mas não era tão simples assim. Aliás, para nosso santo é pela via da Liturgia, principalmente, que ele tem acesso a Boa Nova, ao contrário do que possamos pensar. Talvez Francisco tenha tido apenas um pequeno livro com os evangelhos, em toda sua vida.
O Evangelho no centro da vocação de Francisco
A partir desta breve consideração podemos olhar para a caminhada vocacional de Francisco e, nela, destacar o encontro com a Palavra de Deus em dois momentos significativos. Em ambos, os evangelhos são o conteúdo principal. Vejamos:
1º) a leitura do evangelho do envio (Mt 10,7-13), na festa de São Matias, celebrada na igrejinha da Porciúncula. Esse momento ocorre por volta do ano 1208, ou seja, cerca de três anos depois de sua experiência com os leprosos e o crucifixo de São Damião. Ele ainda vivia seu processo de discernimento vocacional. Dirá a Legenda de Tomás de Celano:
Mas, num certo dia, quando se lia na mesma igreja [Porciúncula] o Evangelho sobre como o Senhor enviara seus discípulos a pregarem, estando presente o santo de Deus, como tivesse entendido de alguma forma as palavras do Evangelho, depois que se celebraram as solenidades da missa, ele suplicou humildemente ao sacerdote que lhe fosse explicado o Evangelho. Depois que este lhe expôs tudo por ordem, ouvindo São Francisco que os discípulos de Cristo não deviam possuir ouro ou prata ou dinheiro, não levar bolsa nem alforje nem pão nem bastão pelo caminho nem ter calçados nem duas túnicas, mas pregar o reino de Deus e a conversão, exultando imediatamente no espírito de Deus, disse: ‘É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer do íntimo do coração’ (1Cel 22,1-3).
2º) o segundo momento acontece por ocasião da chegada dos primeiros companheiros, por volta de dois meses depois do primeiro encontro. Conforme a hagiografia do Anônimo Perusino – AP 10-11, Bernardo e Pedro, os dois primeiros irmãos que chegam a Francisco desejando aquela mesma vida, perguntam, após a decisão de deixarem tudo para segui-lo, o que deviam fazer. Francisco responde: “Vamos pedir conselho ao Senhor”. Em seguida se encaminharam para Igreja de São Nicolau, onde retiraram três trechos, aleatoriamente, dos livros dos evangelhos. Trata-se das seguintes passagens:
Mt 19,21: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”;
Lc 9,3: “E disse-lhes: Não leveis para a viagem, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro; tampouco tenhais duas túnicas”; e
Mt 16,24: “Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após a mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.
Ambos os momentos são chaves na vida de Francisco. O primeiro o faz intuir o modo de vida a seguir, ou seja, uma vida evangélica. O segundo momento confirma a particularidade desse modo de vida, ou seja, vivida como fraternidade evangélica.
Francisco percebe, a partir da Palavra de Deus, qual é sua verdadeira vocação. Compreende que uma “fraternidade é autenticamente evangélica, isto é, convocada por Jesus Cristo a viver segundo o Evangelho, se ao mesmo tempo é apostólica, isto é, capaz de anunciar”.[1] Ambos os momentos se complementam. Francisco experimenta em sua vida que a Palavra de Deus é quem determina qualquer vocação. É ela que determina a sua vocação. Mas, ele também experimenta que essa mesma Palavra é tanto mais compreendida, quanto mais a vivemos em comunidade/fraternidade.
Francisco ao encontra-se com o Evangelho percebe, antes de tudo, a Pessoa que dá sentido ao seu protagonismo: Jesus Cristo. Tomando alguns estudiosos do franciscanismo podemos dizer ainda que, “para Francisco o Evangelho é o solo alimentício de sua experiência, e Jesus Cristo, o caminho permanente para Deus”[2]. Ou também, que para Francisco o Evangelho é o lugar teológico do encontro com Jesus Cristo.[3] Ou seja, que o Evangelho contém, sobretudo, a descrição da pessoa, da vida e da maneira de agir do Senhor, além daquilo que ele ensinou e prescreveu a seus discípulos. Portanto, as palavras da Bíblia, sobretudo o Evangelho, eram para ele um sinal sacramental da realidade que é Cristo [4].
O que podemos trazer para nossa vida?
“Não era um ouvinte surdo do Evangelho, mas guardava tudo em sua memória, cuidando de cumprir tudo cuidadosamente”. Assim Tomás de Celano completa a frase. Francisco gostava de descrever em seus escritos, quando ia citar a Palavra de Deus, sobretudo, quando eram as palavras de Jesus, o verbo “dizer”, sempre no presente: “diz o Senhor”; “diz Jesus no Evangelho”.
Recordamos com Francisco que a mensagem é sempre atual; é para o hoje da história. "A Palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração" (Heb 4,12).
Francisco não se cansava de alertar para o cuidado com as Santas Palavras: “estejamos atentos todos nós, ao grande pecado e ignorância que alguns têm para com o santíssimo corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e para com os seus sacratíssimos nomes e palavras escritos que santificam seu corpo”[5]. Quando fala em “seus sacratíssimos nomes e palavras escritos”, está se referindo aos livros litúrgicos. Mas, como dito anteriormente eram nestes livros que em seu tempo se tinha o acesso a Palavra de Deus. Cabe a nós traduzir essa mensagem de zelo e reverência para hoje.
O que é a Bíblia para mim?
Como a trato e me aproximo dela?
Com Francisco aprendemos um caminho de escuta, compreensão, guarda na memória e cumprimento, ou como conclui Frei Carlo Paolazzi OFM, Francisco é um “homem que escuta, responde e anuncia a Palavra de Deus”[6].
Já dizíamos antes que a Palavra de Deus é quem determina qualquer vocação. Assim foi com Francisco que diz no seu Testamento: “E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho”. Mas, como visto anteriormente esse momento dos irmãos é iluminado pelo Evangelho. Se complementam e iluminam-se mutuamente. A Palavra de Deus iluminou o processo vocacional de Francisco. A presença dos irmãos colaborou para este caminho se tornar fundamental em sua vocação.
A Palavra faz parte do seu processo de discernimento vocacional?
Você também a vive em comunidade?
O que você aprende quando a vive assim?
Que este mês da Bíblia seja momento de revermos nossa relação com a Palavra. Que em nosso processo de discernimento Ela nos ilumine e conduza, pois a Palavra de Deus é lâmpada que ilumina os nossos passos e luz que clareia os nossos caminhos (cf. Sal 119,105). Que essa breve reflexão possa lhe auxiliar e provocar.
Glossário:
[1] ORDEM DOS FRADES MENORES CONVENTUAIS. O Senhor me deu Irmãos. Terceira etapa 2007-2008. In: VIII Centenário da Fundação da Ordem 1209-2009. OFMConv, 2007. p.4.
[2] ROTZETTER, Anton. Mística e seguimento do Evangelho "Ad Litteram" em São Francisco de Assis. Revista Concilium, 169, p. 70-81. Petrópolis: Vozes; Concilium, 1981. p. 81.
[3] Cf. GOITIA, José de. Um trozo de cristología viviente: Francisco de Asís. Selecciones de Franciscanismo, Valencia, v. 14, n. 42, p. 411-451, Sep. Dic. 1985. p. 426.
[4] Cf. STRABELI. Mauro. Subsídios para uma leitura franciscana da Bíblia. Piracicaba: Centro Franciscano de Espiritualidade, 1993. p. 23.
[5] 2ª Carta aos Clérigos 1.
[6] PAOLAZZI, Carlo. Lettura degli Scritti di Francesco d’Assisi. Biblioteca Francescana, 2015, p. 51-52.