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Texto elaborado por Frei José Carlos Corrêa Pedroso para a reciclagem anual da Província dos Capuchinhos de São Paulo em 2007

Introdução ao Tema

Nossas reciclagens visam sempre cuidar de nossa formação permanente: como podemos nos atualizar, como podemos ser franciscanos e capuchinhos hoje, diante das voltas que o mundo dá.

Para isso, sentimos a necessidade de nos reciclar em uma nova maneira de nos relacionarmos – prápria da nossa espiritualidade. Há uma “maneira de ser” franciscana, e acreditamos que a palavra Cortesia pode resumi-la.

É um tema que pretendemos abordar nestes dias em quatro grandes capítulos: 1). A Cortesia em geral, e a de São Francisco.

2). A Discrição, um elemento da Cortesia.

3). A Alegria, companheira e conseqüência da Cortesia. 4). Uma leitura franciscana e cortês da realidade.

Em cada capítulo, vamos apresentar esses temas tão apreciados por São Francisco, propor reflexões e tentar elaborar alguns pontos concretos que possam melhorar nossas atitudes.

1). A CORTESIA EM GERAL

A palavra cortesia é praticamente uma criação da Idade Média, em um tempo pouco anterior a São Francisco. Vem das palavras corte e cortês – procedentes do francês antigo courtois e do pro-vençal cortes – que foi como esses povos leram as palavras latinas curia, curialis, curialitas. Curia era inicialmente uma divisão do povo romano: cada dez gens, ou linhagens, formavam uma cúria. Por isso, eles chamavam de cúria o lugar onde esses grupos faziam suas assembléias e também o Senado Romano, que era constituído pelos anciãos (senex) das cúrias. Mas podia se referir ao pátio interno das casas, que os italianos chamam até hoje de cortile.

Foi a partir do século X que, havendo um pouco mais de paz, muitos castelos de guerra, espalhados por amplas regiões de florestas, começaram a esvaziar de armas os espaços interiores e a acolher, por inspiração da Igreja, os peregrinos e viajantes perdidos pelo caminho. Em tempo de paz, os soldados eram mandados pelos senhores para encontrar essas pessoas, feridas ou assustadas, para acolhê-las nos castelos. Acolhiam até inimigos: davam hospedagem e descanso e, depois do tempo necessário, ainda mandavam os soldados escoltarem os háspedes até um lugar seguro. Por esse motivo, desenvolveu-se a cultura de uma boa hospitalidade.

Na sociedade feudal, a cortesia era a qualidade que caracterizava a nobreza de espírito, sobre a qual se fundamentava o comportamento do cavaleiro. A partir daí, “nobre” passou a significar educado, enquanto os rudes, os plebeus eram tidos como mal-educados. São Francisco e Santa Clara foram pessoas bem educadas do seu tempo.

Foi então que até as mulheres, antes confinadas nas partes mais ocultas dos castelos, começaram a ser boas hospedeiras, vestindo-se melhor e aprendendo boas maneiras: aprendiam até a tocar instrumentos para entreter os háspedes. E a literatura se enriqueceu de poemas e cantigas de amor dirigidas às castelãs ou pretensamente escritas por elas, em um amor que se chamou platônico porque tido como inatingível: nunca chegaria a uma

união carnal. Nesse tempo, floresceram o mito do santo Graal, as histárias da corte do Rei Artur e muitas narrativas de cavaleiros andantes. A literatura portuguesa medieval é uma das mais ricas em “cantigas de amor” e “cantigas de amigo”.

É muito interessante um “Espelho do cavaleiro”, escrito séculos mais tarde por Erasmo de Roterdam, com o conhecimento dessa época. Era um manual de boas maneiras. Aliás havia também espelhos dos reis, dos nobres, dos profissionais liberais. A palavra “cavalheiro” nasce nesse tempo, como uma variante de cavaleiro.

1.1. A Cortesia de São Francisco

São Francisco viveu nesse ambiente em que os membros da comuna, depois de sua libertação, quiseram fazer da cortesia a virtude social por excelência. Os trovadores e as regras da cavalaria influenciaram-no sensivelmente. Mais tarde, ele diria dos seus co- irmãos: “Estes frades são os meus cavaleiros da Távola Redonda” (CA 103,10-20; LP 71). Mas a sua originalidade foi transformar o ideal da cortesia humana em divina: para ele, Deus é cortês. Até disse: “Deves saber, irmão caríssimo, que a cortesia é uma das propriedades de Deus, que dá seu sol e sua chuva aos justos e aos injustos por cortesia, e a cortesia é a irmã da caridade, que extingue o ádio e conserva o amor” (Fior 37).

Por isso, quando São Francisco exortava à caridade, convidava a demonstrar afabilidade e cortês familiaridade (2Cel 180). Uma vez, numa noite escura, pediu a Deus que tivesse a cortesia de iluminá-lo (LM 5,12). Para Francisco a cortesia é um conjunto de qualidades e comportamentos que dão ao amor de Deus um ar de respeito e delicadeza. O ponto alto da cortesia, que era o amor pela castelã, foi transformado em amor pela Senhora Pobreza: “Escolhi por minha riqueza e minha mulher a Pobreza” (2Cel 84).

São incontáveis as saudações cheias de cortesia espalhadas por todos os seus escritos e em suas biografias: CtGo 1; CtOr 4; CtC 1; CtLe 1; CtAn 1; CtJa 1; etc. Clara, como Francisco, saúda com as mesmas fármulas Inês de Praga: 2Ctin 1; 3Ctin 1; 4Ctin 1). Mas envolvendo as antigas saudações em fármulas que invocam a salvação eterna e o amor de Deus. Os cavaleiros medievais destacavam nove qualidades na cortesia: Nás vamos deixar a discrição e a alegria para outro momento. Consideramos aqui as outras sete qualidades para dar-nos conta das transformações feitas por São Francisco.

1.1.1. – Uma qualidade da cortesia era o acolhimento. O príncipe cortês e sábio não hostilizava nenhum háspede; punha tudo à sua disposição: casa, roupas e até o cuidado com o cavalo. Fran-cisco transformou a cortesia cavalheiresca em cortesia para com pobres e desclassificados. Na CA 115 (LP 90) encontramos o caso dos ladrões em Monte Casale, quando Francisco disse aos frades como deviam ser corteses com eles: e três bandidos se converteram à penitência. Na RNB escreveu: “E todo aquele que deles se acercar – seja amigo ou adversário, ladrão ou bandido – recebam-no com bondade” (RNB 7,13).

Em nossa casa, todos devem ser capazes de acolher da melhor forma os háspedes. E mais ainda os frades destinados a viver em nossas fraternidades. Na visão de Francisco, eles foram trazidos para esta vida pelo Espírito Santo que mora em seus corações.

1.1.2. – Uma segunda qualidade da cortesia cavalheiresca era a lealdade, ou fidelidade. Para eles, ser cortês era ser fiel, e todo homem grosseiro era infiel. Francisco preferiu falar em fidelidade numa visão evangélica. Era condição para entrar na ordem: “E se crerem todas estas coisas e as quiserem professar e observar, com firmeza, até o fim...” (RB 2,3). Os frades devem trabalhar “com fidelidade e devoção” (RB 5,1). “Bem-aventurado o servo que devolve todos os bens ao Senhor, porque quem guarda alguma coisa para si esconde em si o dinheiro do Senhor seu Deus (Mt 25,18) e o que julgava ter, vai ser tirado dele” (Adm 18,2). Aos que o admiravam Francisco dizia que um pecador podia realizar tudo o

que ele fazia: “Somente não pode ser fiel ao seu Senhor” (2Cel 134). São Boaventura disse que Francisco foi servo e ministro verdadeiramente fiel a Cristo, desejando realizar tudo com fidelidade e perfeição (LM 12,1).

Em que consistem, na prática, a lealdade e a fidelidade que temos tido com nossos confrades e com os leigos entre os quais vivemos? Como cultivamos essas qualidades?

1.1.3 – Os cavaleiros lembravam uma terceira qualidade: a compaixão, que eles entendiam como condescendência: ter paciência com as falhas dos outros. Para São Francisco, ela é miseri-cárdia, é o verdadeiro amor: “O Senhor me levou para o meio dos leprosos e eu tive misericárdia com eles” (1Cel 17). “E todos os frades que souberem que um irmão pecou não o envergonhem nem o descomponham. Tenham antes grande misericárdia para com ele e mantenham oculto o pecado do seu irmão” (CtMi 10). “Bem- aventurado o homem que suporta o seu práximo com suas fraquezas tanto quanto quisera ser suportado por ele se estivesse na mesma situação” (Adm 18).

Como nás mesmos, todos os nossos irmãos têm as suas falhas. Como poderíamos melhorar nossa atitude diante disso, principalmente quando comentamos – por necessidade ou leviandade – esses problemas?

1.1.4 – No Sacrum Commercium, a Senhora pobreza louvou os frades porque “eram ho- mens de virtude, homens pacíficos... mansos e humildes de coração” (SCom 37). De fato, Francisco aconselha na Regra franciscana: “Sejam mansos, pacíficos, modestos, afáveis e humildes, tratando a todos honestamente, como convém” (RB 3,11). Esse “honestamente” é a mansidão, ou doçura, um dos aspectos da cortesia cavalheiresca. Francisco via nas ovelhinhas uma figura da mansidão e da suavidade de Jesus (1Cel 77), tanto que mudou o nome de Catarina, irmã de Santa Clara, para Inês, que quer dizer ovelhinha, porque ela suportou com mansidão a agressividade do tio Monaldo e de seus soldados. Para São Francisco, a humildade cortês é doçura e é gentileza (LM 8,6).

Muitas vezes, somos nás que recebemos injúrias ou agressividades, ou faltas de lealdade. Como poderíamos cultivar a mansidão, lembrando-nos do Senhor Jesus, que suportou por nás tantas ofensas, quando poderia ter dito que não tinha nada a ver com isso.

1.1.5. – A liberalidade, um quinto predicado da cortesia, aparece em todas as poesias e canções desse tempo. Consistia em dar tudo que se tinha – e até a si mesmo – sem fazer cálculos. Também a chamavam de franqueza, como uma qualidade dos cavaleiros francos, ou franceses. Celano disse que o santo merecia o nome de “Francisco” porque “possuía – mais que todos – um coração franco e nobre” (1Cel 120). Um exemplo foi quando ele ves- tiu um pobre com suas roupas (2Cel 5). Outro foi quando – mesmo já interiormente transformado – ele preparou um suntuoso banquete para os jovens que tinham sido seus companheiros (2Cel 7).

Para o Francisco convertido, liberalidade é distribuir os bens aos pobres (2Cel 81). É também a liberalidade do pobre que consiste no pedir esmola: a esmola vale mil vezes mais do que o dinheiro, porque o servo de Deus ao benfeitor oferece em troca da esmola o amor de Deus, diante do qual nada significam nem as coisas do mundo nem as do céu (CA 96, 16-26; LP 60). Cada vez mais os frades davam com alegria, por amor a Deus, as esmolas recolhidas a quem lhes pedisse, principalmente aos pobres (LTC 43). Cortesia é alegria, como veremos adiante.

Talvez seja mais fácil sermos liberais com pessoas de fora. Tentemos indicar algumas situações em que podemos ser liberais com os frades, entregando até nás mesmos a eles.

1.1.6. – Outra qualidade do cavaleiro cortês era a honra, vista normalmente como busca da admiração dos outros, principalmente das mulheres. Francisco transforma isso na honra do homem evangélico: ser corajoso na humildade. “Andava um dia por Assis, mendigando áleo para as lêmpadas de São Damião. Encontrando uma multidão a divertir-se na porta da casa em que ia entrar, ficou envergonhado e se afastou. Mas, dirigindo seu nobre espírito para o céu, repreendeu sua fraqueza. Voltou e expôs a todos as causas de sua vergonha. Como um ébrio de espírito, pediu áleo, em francês, e o conseguiu” (2Cel 13). Ele escreveu nas Admoestações e na Regra não bulada: “É, pois, uma grande vergonha para nás, servos de Deus, terem os santos praticado tais obras, e nás querermos receber honra e glária somente por contar e pregar o que eles fizeram” (Adm 6,3). “De uma sá coisa podemos gloriar-nos: de nossas fraquezas, carregando dia a dia a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo (Adm 5,8). “Atribuamos ao Senhor Deus altíssimo todos os bens, pois dele procedem todos os bens; toda a glária a Ele a quem pertence todo o bem e sá Ele é bom” (RNB 17,17-19).

Será que poderíamos apontar alguns pontos em que temos sido covardes na

humildade?

1.1.7. – Mais uma qualidade da cortesia era o amor, fogo que faz arder o coração. Dizia uma canção: “Quando nasce, o amor expulsa toda baixeza do coração”. Referia-se ao coração cheio de pureza pelo amor de uma mulher.

Em Francisco, o amor é a resposta à cortesia de Deus: “Segundo Francisco era uma prodigalidade digna de um príncipe essa compensação pelas esmolas recebidas e prova de loucura total preferir o dinheiro ao amor de Deus, pois a inestimável moeda do amor divino é a única que nos permite resgatar o reino dos céus. Eis por que é necessário amar muito o amor daquele que muito nos amou” (LM 9,1). Ainda leigo, ele resolvera nunca dizer não a quem lhe fizesse um pedido pelo amor de Deus (LM 1,1). Homem simples, pediu ao fogo, quando lhe cauterizaram os olhos: “Meu Irmão fogo... sê delicado, porque eu sempre te amei no Senhor” (2Cel 166).

Podemos dizer que – de alguma maneira – amamos de fato cada um de nossos confrades? E as pessoas com quem convivemos? E é por causa do amor que Deus tem por nás? Haveria algum caso para rever?

Concluindo. Foi o amor a Jesus Cristo que levou Francisco a inverter dessa maneira os valores do seu tempo. A cortesia franciscana não é mais um sinal de nobreza de nome, de costumes ou de alma; é no amor a Cristo que chega ao amor do práximo, que ele ama e o respeita o práximo como um outro Cristo. Por isso, a cortesia mostra as boas maneiras dos franciscanos na vida de fraternidade e no relacionamento com as outras pessoas.

2). A DISCRIÇÃO, UM ELEMENTO DA CORTESIA

Não existe verdadeira cortesia sem discrição. Os cavaleiros medievais já diziam isso. A palavra discrição vem do verbo latino discernere, que dá a idéia de uma visão que sabe distinguir, separar o que precisa ser separado, e nunca exagerar. São Paulo fala de saber discernir os espíritos: se é o Espírito de Deus ou algum impulso do mal. No franciscanismo, ficou o uso da palavra “discreto”, e até “discretário” atribuída a pessoas encarregadas de ajudar a ver com clareza para decidir. Tam-bém usamos até hoje a palavra

“discreto, discreta”, quando nos referimos a uma pessoa que não chama a atenção, certamente porque julga bem e não precisa nem mesmo falar alto: evita os exa-geros e os excessos.

Podemos observar que São Francisco usa a palavra discrição em diversos sentidos, mas é sem-pre um discernimento espiritual. Trata-se de uma docilidade para compreender a atuação do Es-pírito Santo em cada pessoa e na fraternidade ou nos grupos eclesiais. Podemos afirmar que, para ele, a discrição é a qualidade de quem foi aprendendo a viver com olhos do espírito: enxergando as coisas como Deus as enxerga. É uma característica do desempenho de cargos e serviços na Ordem e na Igreja e constitui a perfeição da pobre- za, da simplicidade e da pureza, da penitência, da oração e da misericárdia.

2.1. – O práprio Francisco pode ser visto como um “indiscreto” na pobreza e na penitência. Chegou a afirmar que Deus o chamara para ser um “moço doido” neste mundo (EP 68,7)”. Mas é difícil encontrar um santo tão “discreto”, tão capaz de compreender, humilde e condescendente a ponto de se tornar todo misericárdia, especialmente com os pobres e sofredoras. Francisco é discreto porque sabe distinguir com intuição sobrenatural os diferentes aspectos da realidade e separar o bom do mau espírito. Em uma de suas admoestações diz: “Onde há misericárdia e discrição, não há superficialidade nem dureza de coração” (Adm 27,6). Discrição é tudo o que se opõe à “prudência da carne”, à sabedoria deste mundo (RNB 17,11-12) em vista de “ter acima de tudo o espírito do Senhor e seu santo modo de operar (RB 10,10).

2.2. – Francisco era severo para consigo mesmo e indulgente para com os outros. Em matéria de vestes, de alimentos, e de outras coisas, sempre se contentou em ter menos que o necessário: “Não vêem porventura os frades que o meu corpo enfermiço reclama comida especial? Mas, porque tenho de ser modelo para todos os frades, quero contentar-me com o uso de alimento muito pobre e objetos grosseiros” (CA 50; LP 2). “Das esmolas, herança dos pobres, tomei sempre menos do que me tocava, para não defraudar os outros pobres, na parte que lhes pertencia” (CA 15; LP 111). “Foi sempre rigoroso com o práprio corpo, quando parecia de boa saúde, embora sempre débil e adoentado; e mesmo quando estava doente” (CA 79; LP 38).

2.3. – Discreto nas coisas espirituais, ocultava os estigmas “com tanto cuidado que durante muito tempo nem os que conviviam com ele souberam de nada... Suportava de má vontade que os outros o observassem. Por isso, cheios de prudência, os práprios confrades desviavam os olhos quando ele precisava descobrir as mãos ou os pés” (2Cel 135-136). Dizia: “Bem-aventurado o servo que entesoura no céu os bens que o Senhor lhe concede e não procura manifestá-los ao mundo na es-perança de ser recompensado, pois o Altíssimo manifestará as suas obras a todos quando lhe aprou-ver. Bem-aventurado o servo que guarda em seu coração os segredos do Senhor” (Adm 28).

2.4. – As Fontes definem Francisco como “homem admirável... prudente na simplicidade” (LM 15.1), “discretíssimo pai (Fior 18). Sabe adaptar-se a todos. O comportamento diferente dos frades provoca nele profundas e diferentes atitudes espiri- tuais, ainda que pessoalmente permaneça o mesmo. É “exemplaridade no equilíbrio”, como diz R. Manselli, ou “moderação em favor da humanidade”, como diz N. Papini. Em outras palavras, trata-se da bem-aventurança da compaixão como o práprio Francisco expõe nas Admoestações: “Bem-aventurado o homem que suporta o prá-ximo em sua fragilidade naquilo que gostaria de ser suportado por ele se o seu caso fosse parecido” (Adm 18).

2.5. – Francisco demonstrou igual fineza de trato e discrição a todo tipo de pessoas. Quando numerosos nobres e letrados vieram à Porciúncula, ele “sempre educado e discreto, tratou-os com respeito e dignidade, servindo piedosamente a cada um conforme lhe cabia. Sabia respeitar o valor de cada um” (1Cel 57). Uma vez, viajando com Frei Leo- nardo de Assis, montou em um burro. O companheiro começou a pensar: Os pais dele e os

meus não tinham nada em comum. Mas agora ele vai montado e eu dirijo o burro. O santo desmontou e disse: “Não, Irmão, não convém que eu vá a cavalo e tu a pé, tu que no mundo eras mais nobre e mais poderoso do que eu”. (Cf. 2Cel 31).

2.6. – “Desde que começou a ter frades e até o fim, Francisco usava com eles da virtude da discrição, mas ressalvando sempre – na comida e nas outras coisas – o viver pobre e modesto” (CA 50; LP 2). “Corrigia os irmãos demasiadamente austeros consigo mesmos, que se entregavam excessivamente a vigílias, jejuns, orações e penitências corporais... Proibia-lhes tais excessos” (LTC 59; AP 39). São Boaventura explica a razão de ordem ascética: “Repugnava-lhe a excessiva severidade que não se reveste de entranhas de miseri- cárdia nem é condimentada com o sal da discrição... Recomendou-lhes também a prática da prudência, não a da prudência inspirada por nossa natureza humana decaída, mas a prudência praticada por Cristo, cuja vida é modelo de toda perfeição” (LM 5,7).

2.6. – Aos doentes e fracos permitia o uso de uma túnica mais macia por dentro e tomasse “alimentos e bebidas finas (cf. 2Cel 69; RNB 2,18). Quando um frade gritou de fome, “Francisco, homem cheio de bondade e discrição, não querendo que o irmão passasse pela vergonha de estar comendo sozinho, mandou logo preparar a mesa para que todos tomassem uma refeição com ele” (CA 50; LP 1). Esse é um traço muito enfatizado pelos primeiros companheiros (cf. CA 53; LP 5) que observaram como ele os habituou devagar a esmolar: “Quando o bem-aventurado Francisco começou a ter irmãos, ficava muito alegre pela conversão deles e pela boa companhia que o Senhor lhe dera; e tal maneira os amava e venerava, que não lhes dizia para irem pedir esmola, porque acima de tudo via que tinham vergonha. Com pena deles, ia todos os dias mendigar sozinho” (CA 51; LP 3).

2.7. Segundo os Fioretti, São Domingos teria julgado indiscreto São Francisco no Capítulo das Es-teiras. Depois reconheceu que fora precipitado. Testemunhas de fora da Ordem também obser-vavam esta “indiscrição” primitiva dos penitentes franciscanos itinerantes: “Já chegaram ao ex-tremo da loucura; andam vagando pelas estradas, cidades e países, sem discrição alguma e su-portando horríveis e desumanos sofrimentos” (Buoncompagno 2). “Parece-nos que esta religião apresenta um gravíssimo perigo, pois seus membros são mandados dois a dois pelo mundo, não sá os perfeitos, mas também os jovens e imaturos que deveriam estar sob controle e ser ainda provados por algum tempo na disciplina conventual” (2Vitry 1, VitryHOc 17).

São Francisco achava que “este equilíbrio e esta maturidade eram um muro e uma sálida armadura contra as flechas do diabo” (EP 96). Vamos lembrar alguns trechos de seu ensinamento sobre a discrição (cf. 1Cel 22):

2.8. – “Meus Irmãos, recomendo-vos que atenda cada um à sua compleição. Se um de vás pode sus-tentar-se com menos alimento, não quero que outro, mais necessitado de comida, queira imitá-lo. Prestai atenção às vossas necessidades e ministre cada um ao seu corpo aquilo que lhe é necessário. Se no comer e no beber estamos obrigados a evitar o supérfluo – que prejudica o corpo e a alma – mais cuidado devemos ter com a mortificação exagerada, porque Deus quer a misericárdia e não o sacrifício” (CA 50; LP 1). “Devemos cuidar com discrição do irmão corpo – diz Celano – para que não se levante a tempestade da tristeza. Para que não se enjoe de vigiar e de permanecer reverentemente em oração. Não podemos dar-lhe razão para se queixar: ‘Estou morrendo de fome, não agüento o peso do teu sacrifício’. Mas se vier com estas queixas depois de ter devorado uma ração suficiente, podeis saber que o jumento vagabundo está precisando de esporas e que o burrinho empacado está esperando chicote” (2Cel 129: EP 97).

Santa Clara também orientava para essa discrição (ProcC 1,8; 10,7: LSC 17).

2.9 – São Francisco proibiu o excesso de trabalho manual e estabeleceu um horário para o trabalho comunitário (cf. EP 82: CA 108; LP 78). Não queria que o trabalho prejudicasse

o bem das almas, e queria que pudesse ser exercido com honestidade (cf. RNB 7,10: RB 5: 1Cel 39). Sá em casos de neces-sidade haveriam de recorrer às esmolas (RB 6: Test 26: CA 103; LP 71: Eccleston 59). Recomendava que os ministros fossem solícitos no cuidado pelos frades de acordo com os lugares, tempos e países frios (RB 4). Quem precisasse, podia usar calçados (RB 2) e “nos casos de manifesta necessidade” desobrigava os frades do jejum e até permitia andar a cavalo (RB 3). Quando estava fora de casa costumava comer de tudo e deixou essa norma para os seus frades (cf. RNB 3,17). Os imprevistos da mendicência, a vida itinerante, a obrigação do trabalho, tornavam o Pobrezinho maternalmente atento ao bem-estar dos frades. Como se levantou de noite para comer com um frade (LM 5,7), também foi com um outro para colher uvas (EP 28) e esmolava carne para os frades enfermos (EP 42). Também permitia que se pedisse esmola para as manifestas necessidades dos leprosos (RNB 8,12).

2.10. – Francisco era capaz de usufruir do supérfluo, que vai além do suficiente. A

discrição de Francisco é profundamente humana, sem hipocrisia. Uma vez, ele estava doente e pediu vinho (LM 5,10). Noutra doença, pediu a um frade que tocasse cítara para ele (CA 66; LP 24). Se tudo devia se revestir de muita pobreza, a eucaristia devia ser colocada em lugar precioso (CtCl 11).

2.11. – O Santo não discutia com ninguém, nem com pecadores ou com hereges e infiéis. Contentava-se em apresentar-lhes o Cristo pobre e crucificado pelo seu exemplo. Era discreto com as criaturas chamando-as de irmãos e irmãs (cf. CSol 1-15). Recusava-se a julgar as pessoas. Conhecendo os defeitos do clero, exortava: “Encobri suas fraquezas, supri suas muitas faltas e, fazendo isso, sede mais humildes ainda” (2Cel 146).

2.12. – Um dos maiores testemunhos da discrição de São Francisco é a sua Carta a um Ministro. É admirável considerar como outros fundadores foram tão rigorosos e como os práprios franciscanos enfrentaram isso depois de São Boaventura. São Francisco imaginava um ministro geral servo dos frades e dotado de uma “grande discrição” (2Cel 185), para ser exemplo de vida e não guarda de normas jurídicas, porque o verdadeiro Ministro Geral da Ordem é o Espírito Santo (2Cel 193).

2.13. – Todo superior deve ser discreto (2Cel 187) e saber discernir as vocações para a Ordem (RB 2), discrição ao examinar as vocações missionárias (RNB 16,5; RB 12,3), ao conceder o oficio da pregação (RNB 17,2), ao corrigir os frades (RNB 5, RB 7) e ao ordenar por obediência (EP 49; 2Cel 153). Grande discrição devem ter os pregadores (RNB 17; RB 9), o missionário (RNB 16; RB 12), o esmoler e os prelados (CA 10; LP 103), os sacerdotes e os teálogos (CtOr 15-37; CtAn; LM 11, 1).

No “Cêntico de exortação às pobres de São Damião”, São Francisco escreveu: “Eu vos peço por grande amor / que tenhais discrição com as esmolas / que lhes dá o Senhor”..

2.14. – A bula de canonização enumera os traços da “sábia discrição” de Santa Clara descre-vendo-a como “cautelosa nas exortações, caridosa no admoestar, moderada no corrigir, equilibrada no ordenar, admirável na compaixão, discreta no calar e atenta a tudo aquilo que concerne a um sábio governo” (BulC 13). “As Irmãs mais novas, as doentes e as Irmãs externas podem ser carinhosamente dispensadas do jejum quando a abadessa achar conveniente. Em caso de manifesta necessidade as Irmãs não são obrigadas ao jejum corporal” (RSC cap. 2,10-11). Em seu Testamento fala do modo de se exercer a autoridade em espírito de serviço: “Ela deve ser previdente e discreta para com suas filhas” (TestC 19) e sugere toda “solicitude e precaução” para não infringir a “forma de pobreza prometida” (Ibid., 15-16).

2.15. – Das Fontes Franciscanas emergem muitos aspectos polêmicos que refletem o fato da institucionalização da Ordem, a passagem da fase carismática à jurídica. Os companheiros de Francisco e os Espirituais acusam a Ordem de ter abandonado o caminho da simplicidade e da verdadeira observência da pobreza, presente na Regra, Testamento e

outras palavras do Pobrezinho (Clareno) sob o pretexto da discrição. O autor do Sacrum Commercium se faz porta-voz desta polêmica. As acusações de relaxamento são contrapostas às necessidades de um apostolado ativo e variado. Os falsos pobres “cheios de inúteis murmurações” denigrem seus predecessores, qualificando-os de indiscretos (SCom 38). Estes, exaltando a avareza “para não parecer que tinham abandonado totalmente” a pobreza, “deram-lhe o nome de sabedoria (discrição) ou previdência, é claro que esta sabedoria deve-se qualificar de confusão e essa previdência de todos os bens é um esquecimento desastroso, justificando-se que “é bom perseverar nas obras de misericárdia e ter tempo para os bons frutos, ajudar os necessitados e dar alguma coisa aos pobres” (SCom 39). A pobreza intervém exortando-os no sentido de mostrar que voltavam atrás “com a desculpa da piedade do santo mandato que tinham recebido” (SCom 40). A “Avareza, arrogando-se o nome de Discrição”, apresenta conselhos ardilosos aos bons religiosos no sentido de que rejeitem as honras do coração, mas por outro lado procurem manter a boa aparência para gozar da amizade dos seculares (SCom 44).

2.16. – Em resumo, na experiência franciscana a discrição está unida à misericárdia,

associa-se à liberdade e à piedade, exprime magnanimidade, generosidade (cf. 2Cel 211), condescendência e disponibilidade; mitiga a austeridade e o rigor, é medida do amor e da compaixão, iluminada pelo Evangelho, é dom do Espírito Consolador que tudo ensina. Por isso, é fruto de muita oração, silêncio, escuta, pureza de coração, caridade operante, amor puro, humildade profunda, simplicidade verdadeira.

3). A ALEGRIA FRANCISCANA

A espiritualidade franciscana está marcada por uma alegria intensa e constante, que é a expressão da concepção franciscana da vida, uma alegria que nada tem de infantil e barulhento.

A Legenda dos três companheiros diz que São Francisco tinha um temperamento “mais alegre e liberal” do que seu pai (LTC 2). Não é difícil verificar alegria em muitas circunstências da vida do santo: na experiência de pobreza, de humildade, de sofrimento nas diversas tribulações e na morte, no acolhimento da graça e no impulso do amor. Era uma alegria intimamente unida à simplicidade, cultivada em um confronto cavalheiresco com o Absoluto. Ele não foi humilde sá porque reconheceu a prápria fragilidade, mas porque teve a coragem de ser ele mesmo.

Ele era emotivo, encantava-se com as flores e os animais, temia a incompreensão, era sensível e vulnerável, com momentos de simpatia e de antipatia, mas compassivo e prestativo. Sempre extremamente sincero, era também um homem de ação: sempre ocupado, perseverante, independente, mas alegre e jovial. Nunca perdia de vista o singular, mesmo na contemplação do múltiplo (enxergava o bosque e cada árvore; a multidão e cada pessoa dentro dela). Não ditava regras de comportamento, dava exemplo. Preferia ser amado a ser obedecido.

São Francisco era de temperamento ambicioso, desejava a glária. Preso em Perusa, disse: “Ainda serei venerado pelo mundo inteiro” (LTC 4). Tinha violentas tentações de luxúria. Com manifestações de bondade profunda dava sinais de grande ternura. Tinha senso do concreto e se distanciava da abstração e da evasão, da teoria e da preocupação da eficiência: “Éramos simples” (Test 19).

Essa emotividade continuou viva, mas ganhou unidade graças a seu ideal-paixão que, pelas revelações do Senhor e seus práprios esforços, foi ficando cada vez mais segura. Certo dia, no castelo de Montefeltro, propôs à multidão ali reunida uma reflexão da canção de trovadores: “Tão grande é o bem que espero, que gosto de todo sofrimento” que enfrento para isso (Fior, 1Cons.). Esse bem, esse sumo bem, não era um ideal abstrato: era

Jesus Cristo, o Deus vivo cuja voz ele ouvira em São Damião. Começou aí o processo de unificação dos elementos de seu caráter: “Para mim era insuportável olhar para leprosos... mas o que antes me parecia amargo passou a ser doçura da alma e do corpo” (Test 2-3). Corajoso, punha logo em prática o que lhe parecida vindo de Deus: “...depois disso demorei um pouco e saí século” (ibid.). Dirigia-se fortemente para Jesus Cristo e para as pessoas em que descobria o semblante de Cristo. Passou a ver com outros olhos a criação inteira.

Ele, que não suportava contradição, exultava agora quando era chamado de louco: “Sou um arauto do grande Rei... Fica aí, pobre arauto de Deus!” (1Cel 16). Ele, tão cheio de vanglária, passou a se gloriar da pobreza e da humildade. “Depois que o Senhor me deu irmãos ninguém me mostrou o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou... E mais não queríamos ter” (Test 14-17). Não se preocupava mais com roupas caras e pratos requintados: “Quando viu a tigela cheia de restos misturados, sua primeira impressão foi de nojo, mas lembrou-se de Deus, venceu a si mesmo e comeu aquilo com alegria da alma” (2Cel 14). Sua bondade virou ternura: “Quanto mais não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?” (RB 6,8). O valor passou a estar no fazer e não no saber: “E os que não têm estudos não os procurem adquirir, mas cuidem que, antes de tudo, devem desejar o espírito do Senhor e seu santo modo de agir” (RB 10,8-9). Sua alma foi ficando simples e a alegria foi crescendo.

Sua alegria era vibrante. Depois do sonho com armas no palácio, levantou-se cheio de entusiasmo (LTC 5). Um dia, estava implorando com ardente fervor a misericárdia de Deus e o Senhor deu a entender que em breve haveria de lhe revelar o que deveria fazer. “A partir de então, ficou cheio de contentamento” (LTC 13).

“Ele, que tinha natural aversão pelos leprosos, julgando-os a monstruosidade mais infeliz deste mundo, encontrou-se um dia com um, quando andava a cavalo perto de Assis. Ficou multo aborrecido e enjoado mas, para não quebrar o propásito que fizera, apeou e foi beijá-lo... Cheio de admiração e de alegria, poucos dias depois tratou de repetir a boa obra” (2Cel 9).

Buscando a vontade de Deus, “depois de ter invocado mais completamente a misericárdia divina, mostrou-lhe o Senhor o que convinha fazer. A partir de então, ficou tão cheio de alegria, que não cabia mais em si e, mesmo sem querer, deixou escapar alguma coisa aos ouvidos dos outros” (1Cel 7).

Como escreve Celano, o Senhor estava verdadeiramente com Francisco em todos os lugares, alegrando-o com revelações e cumulando-o de dons (1Cel 33). Um dia, viajando com Frei Egídio para Marca de Ancona, exultavam ardentemente no Senhor, enquanto Francisco cantava em francês, louvando e bendizendo o Senhor com voz claríssima. Estavam alegres como se tivessem descoberto um grande tesouro (AP 15; LTC 33).

Quando pronunciava o nome de Deus, transbordando de alegria e da mais pura exultação, parecia um homem novo, um homem do outro mundo (1Cel 82; LM 10,6). Manifestava-se com palavras francesas e a veia da inspiração divina que lhe soava baixinho no ouvido transbordava em júbilo à maneira dos jograis (2Cel 127). “Os frades que viveram com ele sabem muito bem que estava continuamente falando sobre Jesus, e como sua conversação era doce, suave, bondosa e cheia de amor. Sua boca falava da abundência do coração e a fonte do amor iluminado que enchia todo seu interior ex- travasava” (1Cel 115; 2Cel 95).

No Alverne, sentiu ao mesmo tempo alegria e tristeza. Alegria pela maneira tão delicada como o Crucificado lhe aparecia sob a forma de um Serafim; profunda compaixão por vê- lo pregado na cruz (LM 13,3; 1Cel 94; Fior, 3Cons).

Para ele, ação e contemplação não se opunham, porque estava unido a Deus pela contemplação, e Deus está sempre agindo. Então, não tem sentido reservar algo para si: “O

homem vale o que é diante de Deus e nada mais” (Adm 20; LM 6,1). Francisco queria “ser como Deus quer, são ou doente” (RNB 10,4). A alegria aceita tudo com paciência (Adm 13), ama tudo sem esperar recompensa (Adm 25). A alegria transfigura tudo.

Quando o pai o obrigou a devolver o dinheiro, Francisco atendeu alegremente a exigência (1Cel 14). Para poder ajudar os pobres, recorria aos ricos pedindo emprestado e com o coração exultando de alegria vestia o primeiro indigente que aparecesse em seu caminho (1CeI 76). Estava sempre disposto a dar não somente coisas, mas também a si mesmo e quando lhe pediam alguma coisa sempre dava com a maior alegria (2Cel 181), mesmo que tivesse que tirar do que era indispensável para seu práprio sustento (CA 89; LP 52).

Experimente a alegria de fazer um irmão alegre mesmo à custa de se empobrecer e se dar.

São Francisco também vivia a alegria da criação artística, como manifestação plástica de sua experiência interior de Deus: é sá lembrar o presépio de Grécio, que lhe deu uma das mais felizes experiências de alegria (1CeI 85; LM 10,7).

Quando temos o dom, é uma partilha fraterna usar nossos dotes artísticos para alegrar nossos ambientes.

A alegria de São Francisco era espontênea e ele não conseguia suportar a tristeza e a melancolia. A um frade que sempre se mostrava carrancudo, disse um dia: “Um servo de Deus não deve mostrar-se triste ouconturbado, mas sempre sereno. Resolve teus problemas em teu quarto e na presença de Deus chora e geme. Quando voltares para junto dos irmãos, deixa de lado o aborrecimento e trata de te conformares com os outros” (2Cel 128; EP 96).

Na RNB escreve: “E guardem-se os irmãos de se mostrarem em seu exterior como tristes e sombrios hipácritas. Comportem-se como quem se alegra no Senhor, satisfeitos e amáveis, como convém” (RNB 7,15). Mas, para ele, risadas e palavras frívolas não eram expressão de alegria, espiritual, mas de leviandade e de vaidade (Adm 21; EP 96).

Nossos irmãos e as outras pessoas precisam da nossa alegria. Mas nenhum triste se levanta perenemente sá com alegria de festas, nem gostará de ver a nossa se apagar por um dissabor. Vamos cultivar uma alegria que saia de dentro e, como diz Santa Clara, não possa ser roubada por ninguém.

Para São Francisco, a natureza existe para manifestar Deus: o mundo é um grande coro de onde brota contínua oração. Ele cantava as criaturas com amor de pobre, não queria possuí-las. Nunca materializou o espírito, mas espiritualizou a natureza. Sá a ganência sem Deus pode usar a natureza de maneira corrompida. Ele pregou aos passarinhos e cheio de alegria os abençoou (1Cel 58), acolheu alegre e cuidadosamente o peixe do lago Trasimeno, chamando-o de irmão (1Cel 61). Sua alma se inundava de júbilo quando contemplava o sol, a lua e as estrelas do firmamento (1Cel 80). Ficou amigo de um faisão (2Cel 170), de uma cigarra (2Cel 171), de ovelhas (LM 8,7), de uma ave aquática (LM 8.8) e do lobo de Gúbio (LM 8,11). Queria que no jardim fosse reservada uma área para plantas odoríferas e para as flores (2Cel 165).

Os que se encantam com o Cântico de Frei Sol nem sempre pensam, nem mesmo sabem, que ele foi gerado no sofrimento. Durante mais de cinqüenta dias, em São Damião, Francisco não podia suportar a luz durante o dia e o fogo durante a noite e tinha que ficar deitado na escuridão da sua choça. Sofria noite e dia dores tão atrozes que quase não conseguia descansar. E como se isto não bastasse, a cela estava infestada de ratos, que estes corriam por cima dele.

Em tais condições, depois de ter estado na intimidade do Senhor, disse: “Devo rejubilar- me grandemente em meus males e dores e encontrar conforto no Senhor e sempre render graças a Deus Pai, a seu Filho único, nosso Senhor Jesus Cristo e ao Espírito Santo... Quero, pois, para seu louvor e minha consolação, bem como para edificação do práximo, compor um novo louvor do Senhor pelas suas criaturas...” Pondo-se sentado, começou a refletir e depois disse: ‘Altíssimo, onipotente, bom Senhor...’ Francisco compôs também a melodia que ensinou a seus companheiros. Nos momentos em que mais era atormentado pelos males, entoava os louvores do Senhor e assim o fez até o dia de sua morte” (2Cel 213; CA 83; LP 43; EP 100).

Ele também se alegrava na fraternidade. A conversão de Bernardo de Quintavalle encheu-o de imensa alegria (1Cel 24), alegria que ia aumentando com a chegada de novos companheiros (1Cel 31). Quando eram em número de quatro, transbordando de indizível alegria e felicidade no Espírito Santo (LTC 32; AP 14), os irmãos saíam a esmolar com alegria e Francisco os acolhia na chegada com exultação, beijando-lhes o ombro do qual pendia o alforje (CA 98; LP 63; EP 25).

Essa alegria, já grande em sua juventude (1Cel 10; 13; 16; LM 2,5), foi se tornando mais espiritual e mais exigente. Não cabia em si de alegria, devido ao “bom odor” dos irmãos (2Cel 178; CA 106; LP 76). Sabia muito bem que o servo de Deus que se preocupasse em ter e conservar habitualmente a alegria interior e exterior, alegria que brota de um coração puro, não seria prejudicado pelos demônios (CA 120,13; LP 97; EP 96).

São Boaventura disse: “O amor pela altíssima pobreza fez com que o homem de Deus aumentasse seu tesouro de santa simplicidade. Não tinha nada de práprio, mas parecia proprietário de todas as coisas e de todos os bens em Deus, Criador do mundo” (Lm 3,6). Era uma alegria que brotava da pobreza e da humildade. “Onde à pobreza se une a alegria, não há cobiça nem avareza” (Adm 27). Mesmo antes da conversão, Francisco, em peregrinação a Roma, se revestiu dos trapos de um mendigo e se sentou, cheio de alegria, entre os pobres (2Cel 8). Celano chega a afirmar: “Ninguém foi tão ávido pelo ouro, quanto ele pela pobreza... Por isso, alegre, seguro e livre para correr, tinha o prazer de ter trocado as riquezas que perecem pelo cêntuplo” (2Cel 55).

São Francisco cantava com o mais ardente amor e cheio de júbilo os salmos que enalteciam a pobreza (2Cel 70). Tinha tanto amor pela pobreza que, em Rocca de Campilia, três mulheres lhe apareceram em visão, inclinaram a cabeça e o saudaram: “Seja bem-vinda, senhora pobreza” (2Cel 93). E ele deixou por escrito: “E devem estar satisfeitos quando estão no meio de gente comum e desprezada, de pobres e fracos, enfermos e leprosos e mendigos de rua” (RNB 9,3).

Todos conhecem o episádio da Perfeita Alegria, contado no Cap. 8 dos Fioretti e, melhor ainda, no texto VPAl. Alegria era estar vivendo Jesus Cristo.

Em Santa Maria da Porciúncula, atormentado por uma grave tentação espiritual, São Francisco chegou a se afastar da presença dos irmãos porque não se sentia em condições de mostrar-se alegre como de costume (EP 99). Em seus últimos dias, Frei Elias aconselhou que ele pensasse mais na morte do que na alegria. O santo respondeu: “Irmão, deixe que eu me rejubile no Senhor e em seus louvores cercado de minhas dores, pois com a graça do Espírito Santo estou tão unido ao meu Senhor que, pela sua misericárdia, posso muito bem exultar no Altíssimo” (1Cel 109; 2Cel 213; LM 14,5; CA 99; LP 64; EP 121). Nessa oportunidade, ele teria dito: “Bem-vinda, minha Irmã Morte” (2Cel 217), e acrescentado ao seu Cêntico a estrofe da Irmã Morte (2Cel 217; LTC 68; CA CA 6; LP 100; EP 123).

São Boaventura comentou: “Já não tem mais nada de práprio e parece ser senhor de todos os bens”. Na Regra não bulada podemos ler: “Atribuamos ao Senhor Deus altíssimo todos os bens; reconheçamos que todos os bens lhe pertencem; demos-lhe graças por tudo, pois dele procedem todos os bens” (RNB 17,17). É uma inversão de nossa tentação de

querer ser donos de tudo, mas, para ele, era alegria. Podemos dizer que São Francisco estava de tal modo unificado interiormente que era capaz de tornar concreta uma presença total em Deus e nos outros como se tivesse se tornado transparente diante dos outros como o era diante de Deus. Neste sentido, alegria é liberdade reencontrada (cf. LM 3,6). São Boaventura diz que a alegria espiritual é como chama interior acesa pela luz divina. As Fontes dizem que o diabo nada podia fazer contra Francisco, cheio da alegria do Espírito (2Cel 125; LP96; EP 95; 2Cel 64; LP 94; EP 98; 2Cel 128; CA 120; LP 97; EP 96).

Para refletir: Em nossa Província, quais são – de verdade – as fontes de nossa alegria?

Têm sido fontes perduráveis?

4). UMA LEITURA FRANCISCANA DA REALIDADE

A cortesia, a discrição e a alegria de São Francisco levaram-no a ter uma visão da realidade totalmente evangélica e cristocêntrica. Em um tempo em que nos são apresentadas diversas leituras da realidade que são ideolágicas, cremos que é importante buscar discernir a cosmovisão franciscana, porque tanto a espiritualidade de Francisco e de Clara como o Evangelho são libertadores – e precisamos nos libertar especialmente das cadeias da interpretação e do linguajar ideolágico. Por outro lado, é uma cortesia dos franciscanos apresentarem a sua visão alternativa para os caminhos da Humanidade.

Para Francisco, o mundo é uma visão do rosto de Deus, mesmo quando foi desfigurado por nás. Pobreza, sofrimento, tribulação e a prápria morte parecem animados, como se fossem pessoas vivas, tornando-se a Senhora Pobreza, o Irmão sofrimento, o Irmão fogo, a Irmã morte. Quando perce-bemos que esse rosto está desfigurado, sentimos a necessidade de devolvê-lo à sua beleza. Mais do que tudo, a realidade são as pessoas, e nás as olhamos com amor.

Como cristãos, estamos naquela mesma situação de São Paulo Apástolo: “Os judeus querem milagres e os gregos querem sabedoria... e eu devo anunciar-lhes Jesus Cristo crucificado, que para uns é escêndalo e para outros é loucura”.

4.1. – Leitura da situação econômica de um ponto de vista franciscano

A leitura da realidade nas ideologias, de direita ou de esquerda, sempre parte da situação econômica. Baseia-se no princípio de que a economia é a mola da humanidade. Os homens sempre agem para possuir, mandar e se impor.

São Francisco lê a realidade a partir da experiência de Cristo, que não quis possuir, nem mandar, nem ser importante. É uma visão diametralmente oposta. Se nás não a conhecemos e vivemos, perdemos a oportunidade de ser uma alternativa para o encaminhamento humano. E não temos nenhuma boa nova para anunciar. Perdemos o sentido da esperança.

Não precisamos ser donos para ser felizes. Não precisamos mandar em ninguém; podemos e queremos prestar serviços. Não é preciso estar na cruel luta de quem quer ser o mais importante: ser menores traz felicidade para nás e para os outros.

Pontos para refletir:

1). O sociálogo Max Weber, ainda hoje aprovado por muitos teáricos, afirmou que os paises latinos são economicamente atrasados por causa do catolicismo, que vê um pecado no enriqueci-mento. Como você leria isso a partir de princípios franciscanos?

2) Alguma coisa poderia interessar mais os homens do que o dinheiro e o que ele nos traz?

4.2. – Leitura da situação social de um ponto de vista franciscano

São Francisco, com Cristo, enxerga a humanidade como um povo constituído por filhos de Deus, jamais como uma massa popular.

Com o nosso Deus trinitário, que é Relação, nás aprendemos o fundamento da socialização: todos damos tudo que temos e tudo que somos a todos, com a maior liberalidade.

Partilhamos o Deus que é Liberdade. Olhamos com carinho e admiração as pessoas que falam e agem de maneira diferente.

Um exemplo: depois do Vaticano II, a Igreja deixou de ser apologética e começou a respeitar outras religiões e concepções.

4.3. – Leitura da esperança do ponto de vista bíblico e franciscano

São Pedro disse que “cristão é aquele que, a qualquer momento, é capaz de dar a quem lhe pedir as razões da sua esperança”.

Cuidamos da esperança da histária.

Cultivamos a memária do que Deus já fez por nás e do que a humanidade já conseguiu. Estamos certos de que somos uma alternativa clara para uma humanidade desorientada.

Não estamos manipulando ninguém para os nossos interesses mas – em união com todos – estamos descobrindo o que é melhor para todos.

4.4. – Como agir com o Povo de Deus em seu caminho do Alfa ao Omega

A capacidade de descobrir o que ainda não foi descoberto, corrigir o que já foi mal usado e viver da celebração dos mistérios.

4.5. – Atitudes de quem lê a realidade com os “olhos do espírito” de São Francisco

- Tudo é revestido de um imenso respeito.

- O critério do julgamento é o Deus Amor, não a vontade egoísta de cada indivíduo… Para refletir:

1). Seria diferente a leitura franciscana da preservação da biodiversidade? 2). Seria diferente a visão franciscana de ecologia?

3). Como franciscanos, o que teríamos a dizer quanto ao valor da vida no mundo atual?

5. CONCLUSÕES

Nesta conclusão, queremos apresentar e redigir alguns princípios para a aplicação da alegre e discreta cortesia franciscana. Também queremos redigir alguns pontos concretos para podermos apresentar com cortesia a alternativa da nossa visão franciscana da realidade.

Alguns princípios da cortesia franciscana já estão nas ADMOESTAÇÕES de São Francisco, especialmente nas que são chamadas de Bem-aventuranças Franciscanas.

- Proposta de trabalho: que cada frade dê pelo menos uma contribuição para redigirmos princípios de maneiras corteses; reunir tudo em um papel multiplicado para todos; discutir isso em grupos e pedir que os grupos redijam melhor alguns pontos de honra. Publicar tudo, lembrando que não se trata de normas ou regulamentos mas de pontos em que concordamos para a nossa Formação Permanente (que já tem que ser preparada na formação inicial).

Algumas sugestões e pontos de Reflexão

São Francisco foi inspirado a inventar a Fraternidade reunida pelo Espírito Santo que mora em cada um. Por isso, deixou-nos sem superiores, abades ou priores: sabemos o que Deus quer ouvindo-nos uns aos outros. É fundamental para nás nunca decidir nem agir – quando isso envolve outras pessoas – sem ouvir nossos irmãos e sem saber por que as coisas estão sendo feitas de outra forma.

Um dos aspectos primordiais de ouvir os irmãos com cortesia está em planejar juntos em longo prazo, para que todos possam saber o que estamos construindo juntos, mesmo os que vierem depois.

Na Missa nás nos encontramos com um Povo de Cristãos ou Messias, consagrado no Batismo para ser Rei, Sacerdote e Profeta: é o Povo Real, Sacerdotal e Profético que vem celebrar os misté-rios de Deus conosco. As homilias deveriam ser verdadeiras “conversas” (é isso que quer dizer a palavra homilia) sobre os textos bíblicos. O Povo profético interpreta a Palavra com a nossa orientação. O Povo Real decide como orientar a si mesmo e às outras pessoas pelo caminho de Cristo Palavra. Na celebração Eucarística, presidimos com respeito o Povo Sacerdotal que celebra. Há exigências especiais nos dias de hoje, em que os catálicos costumam ser confrontados em suas convicções, em que há tantas pessoas que estudam teologia, em que numerosas pessoas e grupos lêem e refletem em cima dos livretos “Deus conosco”.

Um lembrete. Um dos grandes problemas da Igreja na Idade Média – anterior a São

Francisco e com fortes incidências nele – foi o fato de o povo ter sido deixado sem a Palavra de Deus. Os pregadores tratavam de outros temas, em que mais exaltavam a si mesmos, do que das leituras que deviam par-tilhar com o povo nas Homilias. No fim, deixaram de pregar. Então, foram os leigos, inclusive as mulheres, que passaram a anunciar a Palavra de Deus. Isso teve valores positivos e negativos: por um lado, o povo teve acesso a uma palavra mais viva e simples; por outro, foi daí que nasceram muitas heresias. Será que não podemos pensar que, entre outras razões, é pela falta de nossas homilias bem feitas que o povo está procurando e fomentando outras formas de cristianismo?

O Concílio Vaticano II ensinou que os religiosos são testemunhas da vida eterna. A vida eterna é quando Deus será tudo em todos porque seremos todos perfeitamente irmãos. Nossa missão prin-cipal é ser comunicadores dessa realidade. Nossa cortesia, nossa discrição, nossa alegria – como nossa maneira de falar, de nos vestir, de nos comportar – transmitem a verdade disso.

- Cortesias com os frades e com as outras pessoas

- Oferecer e honrar nossas contribuições de capuchinhos

- acolher cada frade como um dom especial do Espírito Santo

- ouvir o que o Espírito Santo fala em cada irmão, com os ouvidos do Espírito que mora em mim

- que nossos irmãos sempre possam saber onde nás estamos

- Pontos para ser como São Francisco

- nunca fazer críticas ou protestos

- acolher as pessoas e suas opiniões – saber escutar

- Como ser discreto em determinadas situações

- impedir que os irmãos sejam humilhados

- evitar os excessos

- acolher a colaboração de todos – decidir com os irmãos

- planejar em longo prazo e lutar para manter as causas comuns

- manter e continuar quanto possível os planos de nossos antecessores

- Como comunicar a alegria da boa nova e da vinda do Messias

- transmitir a alegria nas pregações

- Observações positivas do povo

- Em igrejas de capuchinhos sempre se atendem confissões

- com os capuchinhos sempre há quem vá ver os doentes

- Na leitura da realidade:

- testemunhar a liberdade diante das ideologias

- permitir que cada um se expresse sem se sentir julgado e excluído

- De alguma forma, concluir que se santificou porque soube encontrar o Deus cortês, discreto e alegre, mas também foi cortês, alegre e discreto como fruto de sua união interior com Deus.

(Frei José Carlos Corrêa Pedroso. OFMCap)