Crônica de de Frei Tomás de Eccleston - 1-26

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Introdução

Este livro é uma fonte segura e extraordinária para conhecermos a identidade da Ordem no seu começo. O autor é praticamente desconhecido: só sabemos o que dá para adivinhar por seu escrito, onde não é personagem importante. Inglês, não parece que tenha ido à Itália nem conhecido São Francisco. Deve ter entrado na Ordem logo depois de 1230. É bem provável que teve à disposição alguns documentos oficiais. Tenta demonstrar o papel importante da Província inglesa na Ordem.

É interessante sua maneira de apresentar as grandes linhas da nova Ordem na Inglaterra: a mendicidade, a simplicidade e a pureza de uma alegria enorme pelo amor fraterno, tudo partilhado com todo tipo de pessoas da Inglaterra de seu tempo. Defende o valor dessa primitiva província inglesa. Recorda com gratidão os fatos antigos mas não é a favor da continuação da rigidez dos primeiros tempos.

A narração está dividida em temas escolhidos entre os mais importantes. Apresenta uma porção de retratos de frades antigos, para caracterizar uma província franciscana.

Nosso texto latino é o do Tractatus fr. Tomae vulgo dicti de Eccleston, De adventu fratrum minorum in Angliam, edidit, notis et commentario illustravit A.G. Little, in CED, VII, Paris 1909, mas procuramos sempre confrontá-lo com o Liber de adventu fratrum minorum in Angliam, da Annalecta Franciscana I, Quaracchi 1885, pp. 215-256. Seguimos a numeração da nova edição das Fonti Francescane, de 2004.

Decidimos usar a palavra Conversação para traduzir o original Collatio. A palavra Colação é usada até hoje pelas Clarissas para uma refeição leve no fim da tarde. O autor se refere quase sempre às conversas feitas durante esses jantares. Os textos recuados são notas marginais feitas no texto primitivo, e também são primitivas.

Crônica de Frei Tomás de Eccleston

Começa o Tratado da chegada dos Frades Menores à Inglaterra e de sua expansão e crescimento nela

Aqui começa o Prólogo

1. Na doçura de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, Frei Tomás deseja a Frei Simão de Ashby 1, seu pai muito querido, a consolação do Espírito Santo.

2. Como o justo deve julgar sua vida pelo exemplo dos melhores, porque em geral os exemplos compungem mais do que as palavras da razão; e para que tenhais nossos próprios exemplos para confortardes vossos caríssimos filhos, de forma que também eles – que deixaram tantas e tantas coisas e até a si mesmos, procurando seguir o nosso modo de vida e a nossa Ordem – ao lerem ou ouvirem coisas maravilhosas de outras ordens, tenham na própria vocação com que possam ser não menos edificados e rendam inesgotáveis graças àquele que os chamou, ao amado Jesus.

Mui dileto pai no amado Jesus, eu vos comunico as conversações que durante vinte e seis anos colhi – alegro-me por tê-las colhido – dos meus caríssimos educadores e de meus colegas. Portanto, envio-vos este opúsculo em honra daquele, no qual Deus Pai pôs a sua afeição (Mt 3,17), Jesus Cristo, nosso muito amado Deus e Senhor.

A chegada dos Frades Menores na Inglaterra

3. No ano do Senhor de 1224, no tempo do papa Honório, isto é, no mesmo ano em que foi por ele confirmada a Regra de São Francisco 2, oitavo do reinado de Henrique, filho de João, na terça-feira depois da festa da Natividade da Virgem, que naquele ano caiu em um domingo, os frades menores, quatro clérigos e cinco leigos, desembarcaram pela primeira vez em Dover, na Inglaterra.

4. Os clérigos eram estes: primeiro Frei Agnelo de Pisa, diácono, de cerca de trinta anos, que São Francisco tinha nomeado ministro provincial para a Inglaterra no último capítulo geral. Ele já tinha sido custódio de Paris e tinha agido com tanta prudência que conquistara a benevolência tanto dos frades como dos leigos por sua fama de santidade.

O segundo era Frei Ricardo de Ingworth, de nacionalidade inglesa, sacerdote e pregador, o mais idoso, que foi o primeiro da Ordem a pregar ao povo deste lado dos Alpes 3; e mais tarde, no tempo de Frei João Parenti, de feliz memória, foi mandado para a Irlanda como ministro provincial, pois tinha sido vigário de Frei Agnelo na Inglaterra no tempo em que ele foi para o capítulo geral em que foi feita a transladação das relíquias de São Francisco, e dera preclaros exemplos de exímia santidade. Quando terminou seu ministério fiel e agradável a Deus, foi exonerado de todo serviço aos irmãos, no capítulo geral, por Frei Alberto, de feliz memória, e, inflamado pelo zelo da fé, partiu para a Síria e aí descansou em um feliz final.

O terceiro era Frei Ricardo de Devon, também inglês, acólito, jovem, que nos deixou muitos exemplos de paciência e obediência. Pois, tendo percorrido diversas províncias por obediência, sofreu freqüentemente de febre quartã por onze anos, morando em todo esse tempo no lugar chamado Romney.

O quarto era Frei Guilherme de Ashby, ainda noviço de caparão 4, inglês, jovem de idade, que tinha entrado na Ordem havia pouco tempo. Este, perseverando em diversos cargos que ocupou por muito tempo, sustentado pelo espírito de Jesus Cristo, deu muitos exemplos de humildade e pobreza, de caridade e de mansidão, de obediência, de paciência e de toda perfeição. Quando Frei Gregório, ministro da França, perguntou se queria ir para a Inglaterra, respondeu que não sabia se queria. Quando o ministro se admirou dessa resposta, Frei Guilherme respondeu que não sabia se queria ou não, porque sua vontade não era a sua, mas a do ministro: pois queria tudo que o ministro queria que ele quisesse. Frei Guilherme de Nottingham deu testemunho de que era muito obediente, pois quando lhe deu a opção de escolher um lugar para ficar, disse que lhe agradava o lugar que ele quisesse designar.

5. [E como era dotado de boas maneiras e principalmente de uma grande delicadeza, provocou a simpatias de muitos seculares pela com a Ordem. Além disso, atraiu para o caminho da salvação pessoas bem preparadas, de diversas condições, idades e profissões, e testemunhou em muitas ocasiões que sabia fazer as maravilhas do doce Jesus e vencer os gigantes com gafanhotos (cf. Nm 13,33).

[Uma vez, tentado pela carne, amputou sua genitália por amor da castidade; depois se dirigiu ao papa e, gravemente admoestado, mereceu a dispensa para celebrar. Morreu em Londres, depois de muitos anos].

6. Os leigos foram estes: primeiro Frei Henrique de Treviso, lombardo de nacionalidade, que, por sua santidade e especial discrição, foi depois feito guardião de Londres. Quando completou seu trabalho na Inglaterra e o número dos frades já estava multiplicado, voltou para sua pátria.

O segundo era Frei Lourenço, oriundo de Beauvais, que desde o começo trabalhou com suas mãos, de acordo com o preceito da Regra. Depois, voltando para junto do bem-aventurado Francisco, mereceu vê-lo com freqüência e ser consolado por conversar com ele. No fim, o bem-aventurado pai deu-lhe generosamente sua túnica e o mandou de volta para a Inglaterra, feliz com sua dulcíssima bênção 5. Depois de muitos trabalhos chegou, creio eu que pelos méritos de do mesmo pai, ao porto do descanso em Londres, onde, retido por uma doença incurável espera o fim de tão longa fadiga.

O terceiro era Frei Guilherme de Florença, que voltou para a França logo depois que os frades foram acolhidos na Inglaterra.

O quarto era Frei Meliorato. O quinto era o ultramontano Frei Tiago, ainda noviço com o caparão da provação.

7. Estes nove, caridosamente transportados para a Inglaterra pelos monges de Fécamp e cortesmente providos em suas necessidades, tendo chegado a Canterbury, ficaram dois dias no priorado da Santa Trindade. E logo quatro deles foram para Londres: Frei Ricardo de Ingworth, Frei Ricardo de Devon, Frei Henrique e Frei Meliorato. Os outros cinco foram para a hospedaria dos sacerdotes, onde permaneceram até que lhes providenciassem um lugar. De fato, pouco depois lhes foi concedido um quarto pequeno no andar de baixo de uma escola, onde viviam de dia como continuamente reclusos. Mas, de tarde, quando os estudantes voltavam para suas casas, entravam na escola onde estavam, acendendo aí o fogo para sentar-se algumas vezes junto dele. Quando deviam beber sua refeição 6 colocavam sobre o fogo uma panelinha com borra de cerveja, punham um prato na panela e bebiam todos em rodízio, dizendo cada um uma palavra de edificação. E, como atesta um frade que mereceu tomar parte e foi conviva dessa piedade sincera e dessa santa pobreza, às vezes sua bebida era tão densa que quando tinham que esquentar os pratos, punham água dentro. E assim bebiam com alegria. Algo semelhante acontecia às vezes também em Salisbury, onde os frades, ao redor do fogo na cozinha tomavam a borra na hora da colação com tanto prazer e alegria que se sentia feliz o que podia arrancá-la amigavelmente do outro.

O velho Frei Martinho alegrava-se de ter feito a mesma coisa em Sherwsbury, quando os frades chegaram pela primeira vez a esse lugar, que ele mesmo tinha iniciado.

8. Naqueles dias, os irmãos se precaviam tão rigorosamente de contrair dívidas que só o permitiam em extrema necessidade. Aconteceu que Frei Agnelo quis saber com o guardião Frei João como estavam as contas dos frades de Londres, isto é, quanto gastavam em um ano, pois tinha ouvido que viviam muito suntuosamente embora fosse bastante parco o seu procedimento. Jogou fora todas as faturas e anotações e, batendo no próprio rosto, exclamou: “Como sou mau!” e nunca mais quis ver as contas.

Também aconteceu que uma vez, chegando dois frades ao Lugar muito cansados e não havendo cerveja na casa, aceitando o conselho dos mais velhos o guardião mandou pedir emprestada uma bilha de cerveja, mas de forma que os frades do convento que estavam com os hóspedes não beberam, mas por caridade fingiram que beberam.

9. Adenda: Até o tempo da formação da Ordem, costumavam os irmãos ter essa refeição com conversação todos os dias e para beberem em comum os que quisessem, fazendo o capítulo todos os dias. E não tinham dificuldade em receber pratos diversos e vinho, mas em muitos lugares só admitiam iguarias oferecidas durante três dias da semana. No próprio convento de Londres, no tempo do ministro Frei Guilherme, de piedosa memória, e do guardião Frei Hugo, vi irmãos beberem cerveja tão azeda que alguns preferiam beber água e comer o pão que vulgarmente chamam de torta. Além disso, quando faltava pão, muitas vezes comi pão de cevada7 nessa casa na presença desse ministro e de hóspedes.

A primeira divisão dos Frades

10. Quando os quatro frades nomeados acima chegaram a Londres, dirigiram-se aos Frades Pregadores e foram bondosamente recebidos por eles: também ficaram quinze dias com eles, comendo e bebendo o que lhes serviam como se fossem membros da família.

Depois, alugaram uma casa em Cornhill e nela construíram celas com paredes de ramos secos. Também nela permaneceram na simplicidade até o verão, sem capela própria, porque ainda não tinham o privilégio de erigir altares e de celebrar a missa em seus Lugares 8. Pouco antes da festa de Todos os Santos, ainda antes que Frei Agnelo chegasse a Londres, Frei Ricardo de Ingworth e Frei Ricardo de Devon partiram para Oxford, e aí foram igualmente recebidos muito familiarmente pelos Frades Pregadores; e, por oito dias, comeram no refeitório deles e dormiram no dormitório deles, como se fossem membros do convento. Depois, alugaram para si uma casa na paróquia de Santa Ebba, e aí permaneceram sem capela própria até ao verão seguinte.

11. Aí semeou o amado Jesus o grão de mostarda que depois se tomou maior do que todas as hortaliças. Daí partiram Frei Ricardo de Ingworth e Frei Ricardo de Devon para Northampton e foram recebidos no hospital 9 Depois, alugaram uma casa na paróquia de Santo Elói, onde foi guardião por primeiro Frei Pedro, espanhol, que trazia na carne um cilício de ferro e mostrou muitos outros exemplos de perfeição. O primeiro guardião de Oxford foi Frei Guilherme de Ashby, ainda noviço; mas lhe emprestaram um hábito de professo. O primeiro guardião de Cambridge foi Frei Tomás da Espanha. O primeiro guardião de Lincoln foi o leigo Frei Henrique Misericordioso.

Adenda. Em seu tempo foi membro do convento Frei João de Yarmouth, homem de grande santidade, que depois faleceu em Nottingham e está enterrado entre os cônegos de Shelford].

12. No começo, o senhor João Travers recebeu os frades em Cornhill e alugou uma casa para eles. Foi feito guardião um leigo lombardo, chamado Henrique, que então começou a aprender as letras de noite na igreja de São Pedro de Cornhill e depois se tornou vigário da Inglaterra, quando Frei Agnelo foi ao Capítulo geral. No vicariato teve como companheiro Frei Ricardo de Ingworth: mas, no fim, não suportando tanta felicidade e sim enfraquecido pelas honras e alienado de si mesmo, apostatou miseravelmente da Ordem.

13. É bom lembrar que no segundo ano da administração de Frei Pedro, quinto ministro na Inglaterra, no ano trigésimo segundo da vinda dos frades à Inglaterra, foram contados 1242 irmãos que viviam em quarenta e nove lugares da Inglaterra.

A recepção de noviços

14. Quando os irmãos que vieram no início para a Inglaterra e se dividiram indo para os diversos lugares, houve alguns que, trazidos pelo espírito de Jesus, pediram para entrar na Ordem.

O primeiro a ser recebido foi Frei Salomão, um adolescente de boa índole e bem conhecido por sua beleza corporal. Ele costumava contar-me que, quando era noviço, foi feito procurador e foi à casa de sua irmã para pedir esmola. Ela, porém, trazendo-lhe um pão, virou o rosto, dizendo: “Maldita a hora em que te vi”. Mas ele recebeu o pão com alegria e se retirou. Pois  manteve tão estritamente a forma da puríssima pobreza que adotara que de vez em quando carregava em seu caparão farinha e sal ou uns poucos figos para algum irmão doente e, embaixo dos braços levava lenha para o fogo. Tomava muito cuidado para não receber ou reter nada além dos limites da mais extrema necessidade.

Por isso aconteceu uma vez que passou tanto frio que pensou que logo ia morrer. E como os frades não tinham nada para aquecê-lo, a santa caridade deu-lhes uma piedosa sugestão. Reuniram-se todos os frades ao redor dele e, apertando-o com seus corpos, aqueceram-no como fazem os porcos.

Quando devia ser promovido à ordem do acolitato, foi mandado ao venerável pai, o Arcebispo Estêvão, de santa memória, e a ele apresentado por um irmão mais velho. Ele o recebeu com muita cordialidade e o promoveu à ordem desejada sob este título, dizendo: “Aproxime-se Frei Salomão da ordem dos apóstolos 10”.

15. Digo isso para que se saiba quanta reverência tiveram os sábios pela simplicidade primordial dos frades. Depois de terem comido à mesa do arcebispo, voltaram para Canterbury, com os pés descalços na neve, que estava muito alta e de dar medo aos que a viam. Depois, ele foi atacado pela gota em um pé e ficou doente em Londres por dois anos, de tal modo que mal podia mover-se, alguma vez, a não ser carregado.

Durante essa enfermidade teve a honra de ser visitado por Frei Jordão 11, de santa memória, mestre geral de toda a Ordem dos Pregadores, que lhe disse: “Irmão, não te envergonhes, pois o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo te arrastou pelo pé”.

Depois de ter passado tanto tempo no sótão, sem assistir à missa – porque os frades não celebravam no Lugar, mas iam assistir os ofícios e celebrar na igreja paroquial –, tornou-se a doença tão sem esperança que os médicos decidiram que era necessário amputar o pé. Quando trouxeram o machado e lhe descobriam o pé, saiu um pouco de pus, que dava um pouco de esperança, e por isso adiaram dessa vez a dura sentença.

16. Entretanto, concebeu a firme esperança de que, se fosse levado a Santo Elói 12, recuperaria tanto o pé como a saúde.

Quando Frei Agnelo chegou, mandou que, sem demora, ele fosse levado a Santo Elói, no ultramar, como fosse mais cômodo. Isso foi feito e sua fé não o enganou. Antes, ficou posteriormente tão curado que andava sem bengala, celebrava missas e foi feito guardião de Londres e confessor geral de toda a cidade. Entretanto, como suplicara ao muito amado Jesus que o purificasse de seus pecados nesta vida, Ele mandou-lhe uma gota que lhe quebrou a espinha dorsal, de modo que se tornou corcunda e curvo; mandou-lhe uma ardente hidropisia e freqüente fluxo de hemorróidas até ao seu falecimento.

Finalmente, na véspera de ir ao seu encontro, mandou-lhe tão grande dor do coração – ele não sabia a causa dessa dor – que considerava como nada todos os sofrimentos precedentes em comparação com aquela angústia. Chamou os três frades com que tinha mais familiaridade e lhes contou a agonia de seu espírito, suplicando intensamente que rezassem sem cessar pelo seu estado. Perseverando eles unanimemente em oração, apareceu-lhe o muito amado Jesus Cristo com São Pedro apóstolo, de pé na frente da cama e olhando para ele. Ele, porém, reconhecendo imediatamente o Salvador, exclamou: “Tende piedade de mim, Senhor, tende piedade de mim”.

E o Senhor Jesus respondeu-lhe: “Porque sempre me pediste que no presente te afligisse e purificasse, enviei-te esta dor de agora, e principalmente porque deixaste tua primeira caridade e não fizeste, como convinha à tua vocação, dignos frutos de penitência, e porque poupaste muito aos ricos ao impor-lhes penitência”.

São Pedro acrescentou: “Além disso, saibas que pecaste gravemente ao julgar Frei João de Chichester, que morreu recentemente. E agora pede a Deus que te conceda uma morte como a dele”. E, clamando, Frei Salomão disse: “Tende piedade de mim, dulcíssimo Senhor, tende piedade de mim, ó doce Jesus”. Este, sorrindo, olhou-o com o semblante tão sereno que desapareceu toda a angústia precedente, e ele, repleto de regozijo espiritual, obteve a certíssima esperança de sua salvação; e imediatamente, tendo convocado os frades, contou-lhes o que tinha visto; por isso, ficaram não pouco consolados.

Adenda: É digno de memória que, quando os frades estavam no Lugar de Cornhill, veio o diabo visivelmente e disse a Frei Gilberto de Vyz, que estava sentado sozinho: “Pensas que fugi? Ainda vais ter isto”; e lançou sobre ele um punhado de piolhos e desapareceu.

17. O segundo frade recebido por Frei Agnelo foi Frei Guilherme de Londres, que antes tinha sido mudo, mas, como me contou, recuperou a fala pelos méritos de Santa Etelburga, em Barking. Este também, como era amigo do senhor Huberto de Burgh, judiciário da Inglaterra, embora leigo e culto, como diziam, era também famoso como alfaiate, e teve sua vestição em Londres quando os frades ainda não tinham um terreno ou capela.

O terceiro era um jovem de muito boa índole, nobre e delicado, oriundo de Londres, Frei Joyce de Cornhill; este, depois de muitos trabalhos que aí suportara, partiu para morar na Espanha e aí teve uma morte feliz.

O quarto era o clérigo Frei João, moço de quase dezoito anos, de boa índole e de ótima conduta, o qual, tendo completado mais depressa o curso da presente vida, migrou para o Senhor Jesus Cristo. Tinha aconselhado ao senhor padre Felipe, quando seus dentes doíam excessivamente, que mandasse pão e cerveja aos frades menores e prometeu que o Senhor Jesus o curaria. Pouco depois os dois se entregaram e entraram na Ordem dos frades menores.

O quinto era, então, esse padre Frei Felipe, oriundo de Londres, que depois se tornou guardião de Bridgnorth e, tendo obtido o oficio da pregação, a muitos conquistou. Finalmente, foi enviado à Irlanda e aí migrou para o Senhor de maneira feliz.

18. Depois desses, entraram alguns mestres que engrandeceram a fama dos frades: Frei Walter de Burgh, a respeito do qual um frade teve uma admirável visão: que o Senhor Jesus, descendo do céu, lhe estendia um rolo no qual estava escrito: “O tempo de teu trigo não é aqui, está em outra parte”. A ele o Senhor revelou a fraude de uma mulher religiosa que, por meio de visões fingidas, enganou de tal modo um frade ingênuo que ele as escreveu.

Mas Frei Agnelo, não acreditando nele, mandou ao convento que rezassem para que Deus lhe revelasse uma coisa que o preocupava. E eis que naquela noite pareceu a Frei Walter que via uma cerva subir velozmente ao cume de uma alta montanha; dois cães negros a perseguiam e a fizeram voltar até ao vale, onde a estrangularam. Então Frei Walter correu para onde achava que ia encontrar a cerva, mas só encontrou um saquinho cheio de sangue. Quando contou essa visão a Frei Agnelo, este compreendeu imediatamente que a mulher tinha sido seduzida pela hipocrisia e lhe enviou dois frades prudentes que, quando ela acabou confessando que inventara o que tinha dito, reconciliaram-na com a verdade.

Entrou outro mestre, o normando Frei Ricardo que, quando lhe foi pedida pelo dito Frei Walter uma palavra de edificação, depois de longa deliberação, respondeu: “Quem quiser estar em paz se cale”; “Ki vout estre en pes tenge sey en pes”.

19. Entrou também nesse tempo o mestre Vicente de Coventry, que não muito depois, com a cooperação da graça de Jesus Cristo, induziu diligentemente seu irmão, mestre Henrique, a entrar na Ordem. Entrou, pois, no dia da conversão de São Paulo, juntamente com o mestre Adão de Oxford, de santa memória, e com o senhor Guilherme de York, bacharel solene. Este mestre Adão, famoso em todo o mundo, fizera voto de fazer o que lhe fosse por amor da Bem-aventurada Maria; e contou isto a uma reclusa que era sua amiga. Mas ela revelou o segredo a seus amigos: um monge de Reading, a outros da Ordem dos Cistercienses e a um frade Pregador, dizendo também que poderiam conquistar este homem, pois não queria que ele se fizesse frade menor.

Mas a bem-aventurada Virgem, mesmo quando algum deles se aproximava, não permitia que lhe pedisse isso por seu amor, adiando para outra ocasião. E ele teve uma visão de que numa noite devia atravessar uma ponte onde estavam homens armando redes na água para capturá-lo; mas ele, mesmo com grande dificuldade, fugiu e chegou a um lugar muito tranqüilo.

Assim, tendo escapado dos outros por disposição divina, veio a encontrar por acaso os frades menores. Conversando com o velho Frei Guilherme de Colville, homem de notável santidade, este lhe disse entre outras coisas: “Caríssimo mestre, por amor da Mãe de Deus, entra na nossa Ordem e recupera a nossa simplicidade”. Na mesma hora, como se tivesse ouvido isso da boca da própria Mãe de Deus, concordou e, como foi dito, entrou com a maior edificação do clero.

20. Nesse tempo, ele era companheiro do mestre Adão de Marsh e a par de seus afazeres, e não muito depois o convenceu habilmente, pela graça de Deus, a entrar na Ordem. Certa noite, Frei Adão de Marsh teve uma visão de que chegaram juntos a um castelo, e, além da porta, havia sido pintada a cruz do Senhor, e quem quisesse entrar devia beijar a cruz. Então Frei Adão de Oxford entrou primeiro, depois de beijar a cruz; e o outro Frei Adão, tendo-a beijado, seguiu-o logo após. Mas o primeiro logo encontrou uma escada em caracol e subiu tão depressa que, em muito pouco tempo desapareceu de sua vista. O que seguia gritou: “Vai mais devagar, mais devagar!” Mas o outro nunca mais apareceu.

Essa visão podia ser muito clara para todos os frades que então viviam na Inglaterra: Frei Adão, depois do ingresso, dirigiu-se ao Papa Gregório IX, pelo qual foi enviado a pregar entre os sarracenos, como queria; mas em Barletta, predizendo aos companheiros sua morte, faleceu e depois, como se diz, refulgiu com notáveis milagres.

Frei Adão de Marsh entrou em Worcester, certamente pelo amor que tinha à pobreza.

Depois desses, entrou Frei João de Reading, abade de Osney, que nos deixou exemplos de toda perfeição. Depois deste, também o mestre Ricardo Rufo, muito famoso tanto em Oxford quanto em Paris. Entraram também alguns cavaleiros: o senhor Ricardo Gubiun, o senhor Egídio de Merc, o espanhol senhor Tomás, o senhor Henrique de Walpole. A respeito da entrada destes, disse o senhor Rei: “Se tivésseis sido discretos na aceitação dos frades, se não tivésseis procurado privilégios em detrimento dos outros, e principalmente se não tivésseis sido importunos em mendigar, poderíeis dominar os príncipes”.

Como conseguiram lugares

21. Depois disso, crescendo o número dos frades e já conhecida sua santidade, aumentou também a devoção dos fiéis para com eles, e por isso trataram de providenciar Lugares convenientes. Por isso, em Canterbury, o senhor Alexandre, diretor da hospedaria dos sacerdotes, doou-lhes um terreno e edificou uma capela bastante boa para esse tempo; e como os frades não queriam absolutamente apropriar-se de nada, foi posta como propriedade da cidade, mas emprestada aos frades por vontade dos cidadãos. De maneira muito especial, apoiaram-nos o senhor Simão de Langton, arcediago de Canterbury, o senhor Henrique de Sandwich e uma nobre condessa, senhora reclusa de Hackington que, como uma mãe para com seus filhos, favoreceu-os em tudo, conquistando habilmente para eles o favor dos príncipes e dos prelados, cuja simpatia conseguira de maneira incomparável.

22. Em Londres, o senhor João Iwyn hospedou os irmãos e transferiu para o município a propriedade do terreno comprado para os frades, mas designou mui devotamente aos frades o seu usufruto de acordo com os senhores. Depois, entrando na Ordem como leigo, deixou-nos exemplos da mais perfeita penitência e da mais alta devoção. O senhor Joyce, filho de Pedro, ampliou o terreno. Mais tarde, um filho dele, de ótima índole, entrou devotamente na Ordem e mais devotamente perseverou até ao fim.

O senhor Guilherme Joynier construiu a capela às próprias custas e, para construir as outras casas, doou aproximadamente duzentas libras em diversas vezes, e perseverou incansavelmente até à morte na espiritualidade dos frades, visitando-os com contínuos benefícios. Para construir a enfermaria, o senhor Pedro de Elyland doou cem libras por ocasião de sua morte.

Para construir um aqueduto contribuíram especialmente o senhor Henrique de Frowik e Salekin de Basings, um moço de vida muito boa, mas com enorme colaboração da generosidade do Rei. No meu tempo em Londres, vi também tantos e tão múltiplos benefícios dignos da admiração de todos os mortais, em edifícios, em livros e também para aumentar o terreno e ajudar em outras necessidades que foram providenciados pelo próprio doce Jesus para os frades. Por isso os frades devem aí amá-lo e reverenciá-lo para sempre mais do que os outros, de maneira especial.

23. Em Oxford, no início, Roberto de Mercer acolheu os frades e alugou para eles uma casa em que entraram muitos bacharéis notáveis e muitos nobres. Depois alugaram uma casa num terreno onde estão há pouco tempo. Era de Ricardo le Muliner, que em menos de um ano doou o terreno e a casa à comuna da aldeia para o trabalho dos frades. Mas o terreno era curto e muito estreito.

24. Em Cambridge, no começo foram as autoridades da cidade que receberam os frades, dando-lhes uma velha sinagoga ao lado da cadeia. Mas, como os frades não podiam tolerar a vizinhança da cadeia porque só havia uma entrada para os frades e para os carcereiros, o senhor rei deu-lhes dez marcos para pagar um arrendamento que satisfizesse ao seu tesoureiro pelo arrendamento do terreno. Assim os frades puderam construir uma capela, mas tão pobre que o carpinteiro pôde levantá-la em um dia com quinze pares de vigas. Na festa de São Lourenço, como só havia três frades clérigos: Frei Guilherme de Ashby e Frei Hugo de Bugeton, mais um noviço chamado Frei Elias, tão aleijado que precisava ser carregado para a capela, cantaram o ofício solenemente com música. O noviço chorou tanto que as lágrimas corriam por seu rosto quando cantava. Por isso, quando morreu muito santamente em York, apareceu a Frei Guilherme de Ashby em Northampton, e quando ele lhe perguntou como estava, respondeu: “Estou bem, reza por mim”.

25. Em Shrewsbury o senhor rei deu um terreno para os frades, um cidadão chamado  Ricardo Pride construiu a igreja e Lourenço Cox fez os outros edifícios. Mas por ordem do ministro, Frei Guilherme, zeloso pela pobreza, derrubou as paredes de pedra do dormitório e os fez de barro, com admirável submissão e paciência, e com muitas despesas.

26. [Em Northampton, um cavaleiro, Ricardo Gobium, alojou os frades em um terreno de sua herança fora da porta oriental, perto da igreja de Santo Edmundo, onde pouco depois o filho desse benfeitor, chamado João, recebeu o hábito. Mas os parentes ficaram perturbados por seu ingresso na Ordem e o pai ordenou que os frades saíssem de seu terreno e o deixassem livre. O guardião respondeu ponderadamente: “Vamos pôr o jovem no meio: a parte que ele escolher será aprovada”. Os parentes concordaram. Por isso o jovem foi posto no meio do coro, os pais de um lado e os frades do outro. Quando o guardião lhe disse que escolhesse, e Frei João correu para os frades, abraçou o púlpito e disse: “Quero ficar aqui”. Então os frades se prepararam para sair e o senhor ficou esperando fora da porta: eles vieram dois a dois em procissão, e no fim vinha um frade velho e fraco levando um saltério na mão. Vendo sua simplicidade e humildade, o senhor, comovido por divina inspiração, prorrompeu em lágrimas e lhes pediu devota e insistentemente que o perdoassem e voltassem; o que fizeram. Depois disso, o senhor foi como um pai dos frades. Mais tarde, foram levados para a cidade pelos cidadãos e colocados onde ainda estão morando].