Crônica de de Frei Tomás de Eccleston - 112-135

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Progresso especial de alguns frades

113. Finalmente, creio que devo recordar que, enquanto ainda viviam muitos daqueles que tinham plantado a vinha dos Menores na província inglesa, nela e em outras cresceram de tal modo seus ramos que os frades progrediram em diversas dignidades e ofícios, tanto na Ordem quanto fora, principalmente os que mais se humilharam. Assim, Frei Nicolau, que quando leigo aprendeu letras na Inglaterra, tornou-se depois confessor do senhor Papa Inocêncio IV e posteriormente foi nomeado bispo de Assis.

Também um menino muito novo, que foi recebido como leigo, mas, depois, tendo a gloriosa Virgem aparecido e posto o dedo em sua boca, como sinal de pregar e lecionar, não só foi tido como pregador e egrégio professor, mas também notável no governo da Ordem.

Mas quem conseguiria contar os progressos especiais feitos pelos que entraram com especial fervor no começo da vinda dos frades? Eram bons bacharéis e de origem nobre, mas vestiram o caparão da provação, Depois, muitos se portaram de maneira tão diligente quanto louvável no oficio de pregar ou de lecionar e no governo da Ordem.

114. Frei Eustáquio de Merc, antes guardião de Oxford por muito tempo, depois custódio de York, manteve sempre, até à morte, o habitual costume da abstinência, das vigílias e do exercício corporal, mas para com os outros, tinha a suavidade de afeto angelical. Mesmo ao morrer, do fundo do coração falava repetidas vezes à Mãe de misericórdia nestes termos: “Ó Virgem, pelo vosso Filho, pelo Pai, pelo Paráclito, estai presente na minha morte e na minha última viagem”.

Frei Roberto de Thornham, antes guardião de Lynn, depois por muitos anos custódio de Cambridge, no fim pediu com inefável fervor a licença de ir com os cruzados à Terra Santa. Tinha conquistado um afeto incomparável tanto dos seculares quanto dos frades no grave oficio e mostrou-nos na morte tão grandes sinais de salvação que nenhum fiel deve duvidar de sua salvação.

Frei Estêvão de Belassise, antes guardião de Lynn, depois custódio de Hereford, foi tão amável e perfeito que até com lágrimas testemunhava o zelo de seu coração, quando via que o rigor da Ordem se afrouxava. Por isso, exonerado de todo oficio por causa de grande desejo de quietude, teve como seu fruto a saniijicação e como fim a vida eterna (cf. Rm 6,22).

Frei Guilherme Cook, de grande vigor, ficou totalmente esgotado pelos primitivos trabalhos da custódia de Londres e por outras preocupações. No fim, passou da vida ativa para a contemplativa e, rico em obras, descansou em paz.

115. Frei Agostinho, irmão de Frei Guilherme de Nottingham, de feliz memória, foi no princípio familiar do senhor Papa Inocêncio IV; depois com seu sobrinho, o senhor patriarca de Antioquia, partiu para a Síria e, no fim, foi nomeado bispo de Laodicéia. Contou publicamente no Convento de Londres que esteve em Assis na festa de São Francisco e que o Papa Gregório esteve lá e, quando ele ia pregar, os frades cantavam: Hunc sanctus praeelegerat in patrem, etc. (“Este o santo pré-elegera como pai”); e o papa sorriu (37).

Nessa pregação, o papa contou como, em Veneza, dois heresiarcas se converteram e lhe foram enviados com cartas dos cardeais que aí eram legados. Disse que os dois hereges, numa noite, na mesma hora, viram Nosso Senhor Jesus Cristo como um juiz sentado com seus apóstolos e com todas as ordens que há no mundo; mas em nenhum lugar viram os Frades Menores nem São Francisco, que um dos legados numa pregação declarara ser preferido a São João Evangelista por causa da impressão dos estigmas. Viram o próprio Senhor Jesus reclinando-se no peito de João e este, por sua vez, reclinando-se no dele. Como tinham por certo que isso lhes fora mostrado para confirmação de sua opinião – pois julgavam que o legado tinha blasfemado, por isso estavam gravemente escandalizados e desacreditavam a pregação –, eis que o amado Jesus abriu com suas mãos a chaga de seu lado, e apareceu São Francisco de maneira muito clara dentro de seu peito. E o amado Jesus fechou a chaga e o guardou todo inteiro. Por isso, quando os hereges acordaram e, encontrando-se no outro dia, narraram um ao outro a visão e, depois de se terem confessado publicamente aos cardeais, foram enviados ao papa, como foi dito, e por ele plenamente reconciliados.

116. Oh! Quão fortemente obrigados, quão docemente vencidos pelos benefícios divinos, quão honrados por imensa dignidade aqueles que nas dúvidas puderam ser dirigidos pelos conselhos, nos acontecimentos tristes ser confortados pelas consolações, nas coisas graves ser provocados pelos exemplos de tantas e de tais pessoas que tinham as primícias do espírito! Oh graça inefável, oh prerrogativa incomparável, oh afeição tão suave de doçura inexaurível, gozar a amizade de tão grandes, alegrar-se nesta peregrinação pelo especial afeto de homens tão eminentes, ser recomendados pela graça de tantos famosos.

117. Depois da pregação, vieram os novos cavaleiros ao papa, e ele impôs a cada um uma coroa de flores. Daí originou-se o costume de que todos os que devem tomar-se cavaleiros recebam as armas nessa festa. Nesse dia, o papa celebrou fora da igreja, sobre um tablado, a céu aberto, pois não podia ser na igreja pela multidão de pessoas.

118. Frei Pedro de Tewkesbury, ministro da Alemanha, ajudado pela graça de Deus, defendeu de tal modo a posição da Ordem diante do rei, do legado e de muitos falsos irmãos que a fama do fato chegou a muitas províncias, e ficou comprovado seu invencível zelo pela verdade.

Ele mereceu ter o especial afeto do senhor de Lincoln, de quem ouviu frequentemente muitos segredos da sabedoria. Pois, uma vez, disse que, se os frades não fomentassem os estudos e não se dedicassem ativamente à lei divina, por certo aconteceria conosco como com outros religiosos que vimos infelizmente caminhar nas trevas da ignorância.

Ele também disse a Frei João de Dya que lhe providenciasse seis ou sete clérigos idôneos de sua região, aos quais pudesse outorgar os benefícios (42) em sua igreja: mesmo que não soubessem inglês, pregariam pelo exemplo. Por isso, consta que não recusou os que o papa constituiu e os sobrinhos dos cardeais por não saberem a língua inglesa, mas porque eles só buscavam as coisas temporais. Por isso, quando um advogado lhe disse na cúria: “Os cânones querem dizer isto”, ele respondeu: “Pelo contrário, os cães é que querem isso”. Levantou-se e confessou-se em inglês, de joelhos, diante dos jovens que lhe foram apresentados pelos cardeais e batia em seu peito com pranto e lamentações; e deste modo eles, confusos, se retiraram.

Além disso, em sua visita à cúria, quando o camareiro do senhor papa lhe pediu mil libras, querendo que as recebesse de mercadores, respondeu que não queria dar-lhes ocasião de pecar mortalmente, mas, se chegasse são e salvo à Inglaterra, depositá-las-ia no templo (39) de Londres, de outro modo nunca teria nem uma moedinha.

Disse ainda a um frade pregador: “Três coisas são necessárias para a saúde temporal: a comida, o sono e o bom humor”. Também mandou um frade melancólico beber por penitência um cálice cheio de ótimo vinho. Como ele bebeu sem a menor vontade, disse-lhe: “Irmão caríssimo, se fizesses freqüentemente essa penitência, terias certamente uma consciência melhor”.

119. Frei Pedro também contou que, quando os clérigos do arcebispo Santo Edmundo lhe fizeram um pedido por um parente seu que era mensageiro, respondeu o santo: “Se sua carroça está quebrada, por respeito aos vossos pedidos farei com que ela seja consertada; e se não tiver conserto, comprar-lhe-ei uma nova; mas ficai sabendo que nunca vou mudar a situação dele”. Ele mesmo também disse que o santo bispo, quando lhe ofereceram algumas jóias preciosas e  os seus o aconselharam a recebê-las, respondeu: “Se aceitar, estarei enforcado! (Em latim), de uma palavra dessas para a outra só há uma letra a mais”.

O mesmo padre Frei Pedro também contou que Dom Roberto, bispo de Lincoln, no início de sua promoção precisava muito de cavalos. Estava sentado com seus livros quando veio o seu cavalariço e disse que dois monges brancos tinham vindo apresentar-lhe dois belíssimos palafréns. Como lhe repugnasse aceitá-los e alegasse que eram isentos, não consentiu absolutamente nem se moveu do lugar, mas disse: “Se eu os aceitar, vão me arrastar para o inferno por suas caudas”.

120. Uma vez, o bispo de Lincoln, Dom Roberto Grosseteste, ficou tão gravemente ofendido porque o ministro não permitiu que ficasse morando com ele um frade que já tivera em certa ocasião, que não queria falar com nenhum frade, nem com seu confessor; e então Frei Pedro disse-lhe que, se ele desse todos os seus bens aos frades e não lhes desse o afeto de seu coração, os frades não se preocupariam. O bispo começou a chorar e disse: “De fato, vós pecais, porque muito me afligis, porque não posso deixar de amar-vos, mesmo tendo mostrado esta cara”.

Os irmãos comiam com ele à mesa, mas não quis conversar com eles. Disse a Frei Pedro que os Lugares construídos sobre a água não são sadios, a não ser que fiquem bem alto. Também disse que muito lhe agradava ver os frades com as mangas remendadas. E disse ainda que pimenta pura era melhor do que gengibre no molho. E disse que ficava contente quando via que os alunos não prestavam atenção em sua aula, contanto que as tivesse preparado bem; porque, assim, deixava de ter uma ocasião de vanglória e não perdia nada de seu mérito.

121. Frei Mansueto, núncio do senhor Papa Inocêncio IV, narrou ao mesmo padre, no mesmo lugar, que, no dia em que foi lida em audiência a carta em que o senhor Inocêncio IV decretara oito sentenças contra os Pregadores e os Menores (40), perdeu a fala, e só depois conseguiu dizer: “Por causa do pecado corrigiste o homem” (Sl 39,12); e com muita frequência invocava São Francisco; pois dissera também quando com saúde que de nenhum santo recebera tantos favores. O senhor Alexandre IV, quando bispo de Óstia, predissera que estava certo de que o Senhor em breve tiraria o papa do mundo por causa do favor que ele prestou em prejuízo da Ordem. No entanto, em sua morte, todos os seus familiares o abandonaram, com exceção dos Frades Menores Também foi assim com os papas Gregório, Honório e Inocêncio; no falecimento deste esteve presente São Francisco(41). O mesmo Frei Mansueto disse que nenhum mendigo, para não dizer nenhuma pessoa, morre mais miserável e vilmente do que qualquer papa.

122. Frei Mansueto disse que o senhor Papa Alexandre IV, no mesmo dia de sua eleição, suspendeu a carta que o senhor Inocêncio redigira contra os Pregadores e os Menores (42); e depois o primeiro ato que o papa fez foi revogá-la. Pois Inocêncio decretara que fossem excomungados todos os frades que recebessem o paroquiano de alguém em dia de festa para ouvir a missa; e outras coisas parecidas.

Também contou que, na Sicília, um frade, quando estava na horta em oração, viu um enorme exército de cinco mil cavaleiros entrando no mar; e o mar ferveu como se fossem todos de bronze incandescente. E um deles lhe disse que era o Imperador Frederico que ia ao Monte Etna. De fato, naquele mesmo tempo morreu Frederico.

123. Esse mesmo Frei Mansueto contou que, quando era menino de uns dez anos, foi formado pelos frades menores para venerar de maneira especial a eucaristia. Então, para poder comungar dignamente no dia de Páscoa, sendo ainda menino, jejuou a Quaresma quase toda. No dia da Páscoa, quando todo o povo comungava, aproximou-se da comunhão um homem muito perverso e de má fama, chamado Exécio. Recebeu a comunhão sem a devida reverência, voltou logo, sentou-se no banco e começou a tagarelar com os vizinhos, sem se preocupar mais do que se tivesse na boca um pedaço de pão. Frei Mansueto viu a eucaristia sair da boca dele e saltar no chão a grande distância. Na mesma hora, aproximou-se do sacerdote um homem muito venerável, e contou o que vira. Ele mandou logo que procurasse a eucaristia onde caíra. Procurando, encontrou-a no mesmo lugar, ainda que o povo continuasse passando para a comunhão e voltasse por aquele lugar. Então, o menino recebeu reverentemente aquela hóstia e todas as que estavam consagradas sobre o altar, e ficou inefavelmente confirmado na fé.

124. Frei Pedro, ministro da Inglaterra, também contou que, sendo muito familiar na casa do senhor Gofredo le Despenser, foi um dia à sua casa. Um filho dele, um menininho chamado João, foi ao seu encontro muito familiarmente, como costumava. Uma vez, esse menino foi à capela com a senhora sua mãe e assistiu Frei Pedro celebrando; mas, quando voltou para casa, fugia do padre e a mãe não conseguiu de modo algum fazê-lo aproximar-se. Quando ela perguntou por que estava fugindo, disse que o tinha visto devorar um menino na capela, em cima do altar, e ficou com medo de que lhe fizesse a mesma coisa(43).

125. Frei Garino de Erwelle entrou na Ordem ainda bem jovem e depois progrediu tanto que lecionou solenemente em muitos lugares, para admiração de muitos, portou-se com prudência na amizade dos grandes, saiu-se de maneira louvável nos negócios da Ordem e cresceu incomparavelmente no oficio da pregação e na dedicação à contemplação. Morreu diante do altar, em Southampton,  bem na hora nona, abraçando e beijando o crucificado. E um frade chamado João, morto muito antes, apareceu a Frei Simão de Wimbourne, em Salisbury, e disse-lhe que estava bem e que Frei Garino sem qualquer demora havia passado pelo purgatório e fora para o Senhor Jesus Cristo.

126. A província inglesa chegara a tão grande perfeição que o ministro geral Frei João de Parma dizia muitas vezes, quando estava na Inglaterra: “Oxalá estivesse esta província no meio do mundo para poder ser exemplo para todos!” Este mesmo geral celebrou o Capítulo provincial da Inglaterra em Oxford, e aí confirmou as constituições provinciais sobre a sobriedade e a pobreza das construções. E como tivesse dado aos irmãos a opção de confirmar ou exonerar o ministro provincial, eles pediram unanimemente que ele fosse confirmado.

127. Uma vez, esse Frei Guilherme [de Nottingham] disse que o bispo de Lincoln, de santa memória, que nesse tempo lecionava na casa dos frades menores em Oxford, contou-lhe que tinha pregado no Capítulo dos frades sobre a pobreza e colocado a mendicidade na escala da pobreza como o grau mais próximo do abraço das coisas celestes. Mas, à parte, disse que havia um grau ainda superior: viver do próprio trabalho. Por isso, disse que as Beguinas (44) são da mais perfeita e santa Religião, porque vivem dos próprios trabalhos e não oneram o mundo com peditórios.

128. Esse padre memorável também contou que havia um noviço que queria fazer abstinência e disse ao mestre que se propusera tentar pouco a pouco o que poderia fazer. O mestre permitiu-lhe com alegria; e como por algum tempo tivesse começado e às vezes interrogado pelo mestre tivesse dito que se achava bem, finalmente começou a temer ficar fraco e disse isto a seu mestre. Ele respondeu: “Por amor de Deus, come e bebe depressa, ou desmaiarás, porque tua fé é fraca. Foi por medo que Pedro afundou”.

129. Disse, além disso, que era preciso considerar o modo de pensar de São Francisco e sua intenção na regra; caso contrário, assim como crescem insensivelmente os pêlos da barba crescerão as superfluidades na Ordem. Também convém lutar contra as ondas do mundo mais do que é necessário, senão elas vão nos arrastar mais baixo do que pensamos, como a água faz com os que querem atravessar e se dirigem diretamente à margem oposta.

Também disse que o homem só sabe que lhe faz mal ser mudado de lugar por experiência, como só percebe que o cabelo está preso na cabeça, quando é puxado.

Era muito dedicado no estudo das santas escrituras e promovia aplicadamente os estudantes. Queria ter sempre alguma leitura nas mesas fora do refeitório, venerava com afeto especialíssimo o nome de Jesus e recordava com muita devoção as palavras do santo Evangelho. Por isso, compilou cânones bem úteis sobre o Unum ex quatuor (45) de Clemente e cuidou de transcrever toda a explicação dada pelo autor. Ficava longo tempo em meditação, principalmente depois das Matinas, e de noite não atendia confissões ou conselhos, como faziam seus predecessores. Disse também que, como é pior dar uma má regra para fazer alguma coisa do que fazê-la mal, as opiniões destorcidas sobre os fatos da Ordem são piores do que as obras mal feitas.

Dificilmente acreditava em acusações de quem não quisesse fazer a denúncia diante de muitos, e tratava acima de tudo de evitar o vício da suspeição. Esforçava-se muito para evitar a familiaridade dos grandes e das mulheres e, a bem da justiça, com admirável grandeza ignorava a ira dos poderosos. Disse um dia que os grandes prendem os amigos com seus conselhos, e as mulheres, mentirosas e maliciosas, com suas seduções enlouquecem até os devotos. Procurava restaurar com toda diligência a reputação dos difamados que considerava arrependidos. E procurava confortar com suma delicadeza os corações dos desolados, principalmente dos que estavam nos ofícios da Ordem.

130. Então, depois de ter regido a província da Inglaterra por cerca de quatorze anos(46), foi liberado no Capítulo de Metz e enviado ao papa pelo Capítulo geral. Mas, quando chegou a Gênova com o ministro geral, seu companheiro Frei Ricardo foi atingido por uma peste que sobreveio. Tendo os outros fugido, ele ficou para cuidar do companheiro, foi atingido juntamente com ele e morreu. Mas os frades da Inglaterra, sabendo que ele fora liberado e ignorando seu falecimento, convocaram o capítulo provincial e o reelegeram. Quando o ministro geral soube o que tinha sido feito mais pela afeição do que pelo juízo da razão, convocou de novo o Capítulo por meio do vigário, Frei Gregório de Bosellis, e mandou que nunca mais reelegessem quem tivesse sido exonerado pelo Capítulo geral. Mas delegou a confirmação do eleito a Frei João de Kethene, Frei Adão de Marsh e Frei João de Stamford. Foi eleito Frei Pedro de Tewkesbury e aí mesmo foi confirmado.

131. Na exoneração de Frei Elias, perguntaram ao Papa Gregório se ele poderia ser reeleito outra vez, e o papa respondeu que não.

132. Como alguns frades não queriam de modo algum que se contraíssem dívidas, disse-me Frei Guilherme que os irmãos não deviam obrigar-se de alguma forma a saldar dívidas nem prefixar tempo certo de saldá-las, mas podiam licitamente empenhar seu esforço em dedicar-se fielmente para que se a quitação fosse feita.

Disse também que em cem casos os frades podiam contrair dívidas licitamente. E que o frade não pecaria se por sua mão repartisse o dinheiro alheio em esmola. Frei Guilherme disse que, quando morou por mais tempo no convento de Roma e os irmãos não tinham nenhuma comida a não ser castanhas, engordou tanto que muito se envergonhava.

Além disso, disse-me que, quando estava comendo na casa de seu pai e vinham meninos pobres a pedir esmolas, dava-lhes de seu pão e aceitava deles um pedaço, porque lhe parecia mais saboroso o pão duro que era pedido por amor de Deus do que o macio com o qual se alimentavam ele e seus familiares; por isso, os meninos, para tomarem o seu pão tão saboroso, iam e pediam-no um ao outro por amor de Deus.

Disse, ademais, que depois da visitação precisava brincar um pouco para se esquecer do que tinha ouvido. E disse que o amado Jesus suscitava uma nova Ordem para nosso estímulo, o que julgo que foi realizado na Ordem da Penitência de Jesus Cristo.

133. Pois, no Capítulo de Stamford, havia recomendado antes que os frades acolhessem os irmãos da Ordem de Santo Agostinho. Também, muito antes, tinha recebido entre os frades de toda parte os irmãos da Ordem do Carmelo, que o senhor Ricardo de Grey trouxe para a Inglaterra, quando o conde Ricardo voltou da Síria.

[Dom Roberto, bispo de Lincoln, rejeitou os irmãos da Ordem dos Crucíferos, e igualmente foram rejeitados com motivos justos os irmãos da Ordem da Cruz]. Muito tempo antes, chegaram à Inglaterra os irmãos da Ordem da Trindade que o mestre de teologia João tinha fundado por inspiração divina no tempo de Inocêncio III, quando Cristo lhe apareceu quando estava celebrando diante do bispo e do clero de Paris].

134. Frei Pedro recebeu no princípio os Irmãos da Penitência de Jesus Cristo (47) e recomendou-os no Capítulo de Londres. Eles tiveram origem no tempo do concílio de Lyon por meio de um noviço que fora expulso. No terceiro ano da administração de Frei Pedro, chegaram à Inglaterra os irmãos da Ordem dos Mártires, cujo fundador era um tal de Martinho, que em Paris fora uma espécie de palhaço dos nobres da Alemanha.

[Um frade discreto dizia que duas são as coisas que os frades muito amam e uma terceira que muito repetem: as duas que amam são a pobreza sem penúria e a paciência sem ultraje; a terceira que muito repetem é a oração sem devoção].

135. Um certo João(48), de grande valor no mundo por ser muito alto e dotado de bens, mas muito simples por pouca cultura, depois que recebera o hábito e professara, executou até à velhice o oficio de porteiro. Pouco antes de morrer, anunciou com precisão a hora de sua morte, dizendo que tinha que escalar uma alta montanha em uma só noite. Depois de se ter arrastado até ao meio com as mãos e os pés, cansado, desesperou de ir adiante. Mas muitos meninos, dançando e com o rosto muito alegre, gritavam lá do alto: Vamos, Frei João, por que paraste aí? Sobe!”. E logo uns o tomaram pelos braços, outros pelo cordão, outros ainda pelas mangas, levando-o de maneira feliz ao cume da montanha. Disse ele: “Creio que os pequenos e pobres que eu alimentei à porta com os restos dos frades me ajudarão a chegar depressa ao céu”. Tendo dito isso, logo entregou o espírito nas mãos do Salvador.

NOTAS

1 Frei Simão de Ashby não foi provincial. Mas devia ter algum posto importante, pois Tomás de Eccleston diz que é “seu pai” e escreve para o uso de “seus filhos”.

2 A Regra foi confirmada no dia 29 de novembro de 1223. Os frades chegaram no dia 10 de setembro de 1224, oitavo do reinado de João sem Terra.

3 O texto diz citra montes:  seria “para cá dos montes”: (os Alpes). Mais tarde se fixou a terminologia: “para cá dos montes era na Itália (= aquém dos montes) está em relação à expressão ultra montes (= além dos montes); o termo montes indica simples­mente os Alpes. Frei Tomás de Eccleston escreve aquém dos montes porque está na Inglaterra

4 Caparão era uma peça do hábito que distinguia os noviços (RNB 2,8; RB 2,9).

5 Pode ter sido o frade de que falam 2Cel 181, CA 90, EP 34.

6 A expressão empregada é collationem bibere: “Colação era e ainda é em muitos mosteiros a parca refeição da tarde. É a mesma palavra que estamos traduzindo por conversação porque era durante essa refeição que conversavam.

7 O texto traz alia (= outras coisas) mas, pelo contexto, devia ser alicam (= pão de cevada).

8 Foi só aos 3 de dezembro de 1224 que Honório III permitiu que os frades celebrassem missa e ofício em suas capelas Cf. bula Quia populares tumultus, in BF, I, 20. Usamos a palavra Lugar, com inicial maiúscula, para designar as habitações provisórias em que os frades viviam antes de conventos.

9 Na Idade Média, “hospital” tinha um sentido amplo. “Hóspedes” podiam ser peregrinos, pessoas sem casa e doentes.

10 Isso mostra como a vida dos frades era tida como apostólica. Salimbene também fala em Ordem dos Apóstolos, mas não é a mesma coisa.

11 É o Beato Jordão da Saxônia, segundo mestre geral dos dominicanos. Morreu em um naufrágio em 1237. Era muito amigo dos franciscanos ingleses.

12 Santo Eloi é o patrono dos ourives, também invocado em casos de úlceras e de doenças crônicas. Era venerado em Noyon.

13 Desde 1232 Gregório IX mandou frades menores para o sultão de Damasco e outros lugares do Islã (cf. BF, I, 1232, várias bulas). Frei Adão pode ter entrado na Ordem pensando em ir para as missões entre os sarracenos.

14 Haymon de Faversham entrou na Ordem em Paris em 1222 e se uniu aos frades quando se estabeleceram na Inglaterra, em 1224. Teve papel importante contra Frei Elias, foi ministro geral e foi recordado também por Jordão de Jano.

15 Quanto a Frei Gregório de Nápoles, ver a Carta encíclica de Frei Elias, n. 1.

16 João Parenti, Elias, Haymon de Faversham e Crescêncio de Iesi.

17 Agnelo de Pisa, Alberto da Pisa, Haymon e Guilherme de Nottingham.

18 Alberto Rizzato, bispo de Bréscia, patriarca de Antioquia e legado apostólico na Lombardia em 1235.

19 Cf. a bula Ordinem vestrum de 14 de novembro de 1245 (BF, Ep., p. 238).

20 Aqui há muita confusão de datas e lugares.

21 Roberto Grosseteste lecionou de 1229 al 1235, quando foi eleito bispo de Lincoln.

22 Mestres, Lentes, Reitores, Cursores eram diversos tipos de professores medievais de teologia. Artes era outro curso prévio. Disputas eram atividades didáticas. Sentenças era nome de um trabalho de Pedro Lombardo.

23 Não se sabe o nome desse frade. Pode ser um Frei Estêvão que Frei Salimbene diz ter sido enviado por João de Parma para lecionar em Gênova e em Roma.

24 Depois disso, a edição de Little dá páginas de nomes de professores em Oxford. Mas foram acrescentados posteriormente.

25 Bula de Gregório IX de 21 de agosto de 1231.

26 São Lanfranco (1010-1089) nasceu em Pavia. Jurista famoso em Bolonha, retirou-se à abadia de Bec, na Normandia; combateu com empenho a heresia de Berengário, que negava a transubstanciação. Foi arcebispo de Canterbury.

27 Concílio de Latrão de 1059, convocado por Nicolau II. Submeteu Berengário de Tours, que negava a transubstanciação.

28 25 de maio de 1230. A informação é duvidosa. Pode ser atribuída aos adversários de Frei Elias.

29 Gregório IX respondeu com a bula Quo elongati (28 de setembro de 1230).

30 Frei Crescêncio de Iesi foi eleito em 1244, no Capítulo Geral de Gênova, em que se mandou que todos enviassem por escrito o que sabiam sobre São Francisco. Foi geral por três anos. Em sua província, tinha sido adversário dos zelantes.

31 Zelantes era o nome dado aos frades que não ad­mitiam nenhuma evolução na Ordem.

32 Eleito no capítulo de Lyon, em 1247.

33 Frei Bonício de Bolonha, com Frei Leão, ajudou São Francisco a redigir a Regra Bulada (Cf. EP 1, CA 17).

34 Cf. A. VAUCHEZ, Les stigmates de saint François et leurs détracteurs dans les derniers siècles du Moyen-âge, “Mélanges d’archéologie et d’Histoire”, 1968, n. 2, pp. 595-625.

35 Cf. EP 79.

36 A respeito de Santo Estêvão de Muret cf. ILARINO DA MILANO, Un prefrancescanesi­mo nell’evangelismo di S. Stefano di Muret, istitutore di Grandmont?, in Miscellanea Melchor de Pobladura, I, Roma 1964.

37 É uma antífona das Vesperas de São Francisco escritas por Frei Juliano de Spira (cf. AF, X, p. 375).

38 Benefícios eram espórtulas e taxas que um clérigo recebia em deter­minada igreja para se manter.

39 Era a casa dos cavaleiros do templo, que funcionava como um banco.

40 Bula Etsi animarum que limitava os privilégios dos “mendicantes” quanto ao exercício da pregação e da confissão (cf. BF, Epit., pp. 259-261).

41 Informação preciosa. Francisco estava ao lado de Inocêncio III quando ele morreu em Perusa no dia 16 julho de 1216.

42 Cf. a bula Nec insolitum de 22 de dezembro de 1254, in BF, Epit., pp. 261-262.

43 A Chronica XXIV generalium atribui esse episódio a Frei Pedro de Brabante.

44 Instituto religioso que floresceu principalmente na primeira metade do século XIII, formado por mulheres que levavam uma vida comum entre a dos leigos e a dos religiosos propriamente ditos, dedicadas tanto à contemplação quanto à vida ativa.

45 Concordia quatuor evangelistarum de Clemente de Langton.

46 A edição de Quaracchi põe “circiter novem annos”. Little diz que é impossível determinar a data desse capítulo de (cf. pp. 126-127, nota b).

47 Esse era o nome dos Saccati, ou “ensacados” (1251), que chegaram à Inglaterra em 1257 e tinham sido fundados ma Provença  por um certo Frei Raimundo Atanolfo, mandado embora de um noviciado franciscano (cf. Salimbene 5).

48 Este caso não está na edição de Quaracchi.