Anônimo Perusino - Capítulos 1-3

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Sobre o começo ou fundação da Ordem

e sobre os feitos daqueles primeiros frades menores

que foram os primeiros na religião

e companheiros do Bem-aventurado Francisco.

Prólogo

Como os servos do Senhor não devem ignorar o caminho e a doutrina dos santos, pelos quais possam chegar a Deus, 2 por isso, em honra de Deus e para a edificação dos leitores e ouvintes, eu — que vi seus feitos, ouvi suas palavras e fui discípulo deles — recolhi e contei alguns fatos do nosso bem-aventurado Pai Francisco e de alguns frades vindos no princípio da Ordem; na medida em que minha mente foi ensinada pela inspiração divina.

Capítulo 1

O modo como o bem-aventurado Francisco começou a servir a Deus.

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1 Depois que se completaram 1207 anos da Encarnação do Senhor, no dia 16 de abril, vendo Deus que seu povo, remido com o sangue precioso de seu Filho unigênito, vivia esquecido de seus mandamentos e ingrato por seus benefícios, depois de ter tido misericórdia para com ele, que merecia a morte,  durante longo tempo, “não querendo a morte do pecador, mas que se converta e viva” (cfr. Ez 33,11), movido por sua infinita misericórdia, decidiu enviar operários para a sua messe (cfr. Mt 9,38).

2 E iluminou um homem, que havia na cidade de Assis, chamado Francisco, mercador por profissão, esbanjador muito vaidoso da riqueza mundana.

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1 Certo dia, estava na loja, onde costumava vender panos, solicitamente absorvido nos negócios, quando apareceu um pobre pedindo que lhe desse uma esmola por amor de Deus. 2 O sobredito Francisco, entregue ao pensamento das riquezas e ao cuidado do que dissemos, negou-lhe a esmola, mandando-o embora. 3 Enquanto o mendigo saía, o jovem, tocado pela graça, começou a reprovar-se por sua grande grosseria, 4 dizendo: “Se aquele pobre te houvesse pedido uma contribuição em nome de algum conde ou grande barão, lhe darias o que pediu. 5 Quanto mais o devias ter feito pelo Rei dos reis e Senhor de tudo!”

6 Por esse motivo propôs, no coração, não recusar mais nada, daí em diante, que fosse pedido em nome de tão grande Senhor. 7 Chamou o dito pobre e lhe deu uma boa esmola.

8 Ó coração cheio de toda graça, frutuoso e iluminado! 9 Ó firme e santo propósito, que foi seguido por admirável e inesperada, iluminação singular do futuro! 10 Nem é de admirar, se pela voz do Espírito Santo Isaías proclamou: Quando derramares tua alma pelo esfomeado e saciares a alma aflita, nascerá nas trevas a tua luz, e tuas trevas serão como o meio dia (Is 58,10), 11 E: Quando repartires teu pão com o que tem fome, tua luz romperá como a da manhã, e tua justiça precederá tua face (Is 58,7-8).

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1 A este homem bem-aventurado aconteceu posteriormente um fato admirável, que acho indigno deixar passar em silêncio. 2 Dormia, uma noite, em sua cama, quando lhe apareceu alguém chamando-o pelo nome, que o levou a um palácio de e indizível e belo conforto, cheio de armas militares e também escudos resplandecentes e cruzados, pendurados por toda parte na parede.

3 Perguntou de quem eram essas armas que refulgiam com tamanho esplendor e o palácio tão confortável, recebendo esta resposta de quem o conduzia: — “Tudo isso é teu, com o palácio dos teus soldados”.

4 Acordado, começou a pensar mundanamente, como alguém que ainda não tinha provado plenamente o espírito de Deus, achando que nisso teria um principado magnífico. 5 Pensando muito sobre essas coisas, resolveu fazer-se cavaleiro, para que um principado como aquele lhe fosse ofertado como militar. 6 Por isso resolveu partir para a Apúlia, junto ao conde Gentil, preparando panos preciosos como pôde, para ser feito cavaleiro pelo referido conde.

7 Tornou-se, por isso, mais alegre ainda do que de costume e encantava a todos. 8 Aos que perguntavam de onde vinha essa nova alegria, respondia: “Sei que vou ser um grande príncipe”.

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1 Arranjou um escudeiro, montou a cavalo e se dirigiu para Apúlia.

2 Mas, quando chegou a Espoleto, preocupado com a viagem, apeou, noite feita, para dormir. Meio adormecido ouviu uma voz perguntando onde queria ir.3  Explicou, por ordem, todo o seu plano. 4 A voz insistiu: — “Quem te pode fazer melhor, o senhor ou o servo?” Ele respondeu: “O senhor”. 5 “Então, por que abandonas o Senhor pelo servo; o Príncipe pelo cliente?” 6 Francisco respondeu: “Senhor, que queres que eu faça?” 7 “Volta para a tua cidade, para fazer o que o Senhor te vai revelar”.

8 Por graça divina sentiu-se mudado de repente, assim lhe parecia, num outro homem.

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1 Quando amanheceu, voltou para casa, como  lhe tinha sido mandado.

2 De viagem, chegando a Foligno, vendeu o cavalo em que montava e os trajes que pusera para ir para a Apúlia, vestindo roupas mais vis.

3 Feito isso, pegando o dinheiro adquirido, voltou de Foligno para Assis, aproximou-se de uma igreja edificada em honra de São Damião e, encontrando a morar aí um pobre sacerdote de nome Pedro, entregou-lhe o dinheiro para guardar. 4 O padre não quis guardar o dinheiro, por não ter lugar adequado para guardá-lo. 5 Ouvindo isso, Francisco, homem de Deus, jogou-o com desprezo numa janela daquela igreja.

6 Levado pelo espírito de Deus, vendo a igreja a ameaçar ruína e pobre, resolveu usar o dinheiro para restaura-la, e morar ali, querendo libertar e aliviar sua pobreza. 7 Com o passar do tempo também realizou essa obra, com a aprovação prévia de Deus.

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1 Quando ouviu isso, seu pai, amando-o carnalmente e desejando o referido dinheiro, começou a maltrata-lo e, cobrindo Francisco de muitos impropérios, pedia-lhe o dinheiro.

2 Na presença do bispo de Assis, entregou alegremente ao pai o dinheiro e a roupa que vestia, ficando nu sob o manto do bispo, que o abraçou despido.

3 Deus enriqueceu-o quando estava pobre e desprezado, já vazio de coisas temporais, vestido com uma roupa pobríssima e desprezível, ao voltar para morar na referida igreja; 4 enchendo-o do seu Espírito Santo e colocando-lhe na boca a palavra de vida, para que pregasse e anunciasse aos povos o juízo e a misericórdia, a pena e a glória, recordando-lhes os mandamentos de Deus, que tinham esquecido. 5“Deus o constituiu príncipe de uma multidão de povos” (Gn 17,4), que Deus reuniu através dele de todo o mundo.

6 O Senhor o conduziu pelo caminho direito e estreito, pois não quis possuir ouro nem prata, nem dinheiro nem coisa nenhuma, 7 mas seguiu o Senhor em humildade, pobreza e simplicidade de coração.

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1 Andava descalço, com um hábito desprezível, cingido também com um cinto vilíssimo.

2 Em qualquer lugar em que o pai o encontrasse, cheio de uma dor veemente,  amaldiçoava-o. 3 Mas o homem bem-aventurado assumiu um pobre velho, chamado Alberto, pedindo-lhe a bênção.

4 Muitos outros zombavam dele, dizendo-lhe palavras ofensivas; quase todos achavam que tinha enlouquecido. 5 Mas ele não se preocupava e também não lhes respondia; mas procurar com toda solicitude cumprir o que Deus lhe mostrava. 6 “Não se apoiava doutas palavras da sabedoria humana mas na manifestação e na força do Espírito”. (1Cor 2,4.13).

Capítulo 2

Os dois primeiros frades que seguiram o Bem-aventurado Francisco

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1 Vendo e ouvindo isto, dois homens daquela cidade, inspirados pela visita da graça divina, aproximaram-se humildemente dele. 2 Um deles foi Frei Bernardo, o outro Frei Pedro. 3 E disseram-lhe com simplicidade: “De agora em diante queremos ficar contigo e fazer o que fazes. Explica-nos o que devemos fazer com nossas coisas”. 4 Exultando pela vinda e o desejo deles, respondeu-lhes bondosamente: —“Vamos pedir o conselho do senhor”.

5 Dirigiram-se a uma igreja da cidade, entraram e se ajoelharam para rezar: 6 “Senhor Deus, Pai da glória, nós vos suplicamos que em vossa misericórdia, nos mostreis o que devemos fazer”. 7 Terminada a oração, disseram ao sacerdote da dita igreja, que aí estava: 8 “Senhor, mostra-nos o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

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1 Tendo o sacerdote aberto o livro, porque eles ainda não sabiam ler bem, logo encontraram o lugar onde estava escrito: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu” (Mt 19,21). 2 Virando outras páginas, encontraram: “Quem quiser vir após mim (Mt 16,24), etc. 3 E voltando mais outras páginas, encontraram: “Não leveis coisa alguma para o caminho (Lc 9,3), etc.4 Ouvindo isso tiveram uma alegria muito grande e disseram: “Eis o que desejávamos, eis o que procurávamos”. 5 E o bem-aventurado Francisco disse: “Esta será nossa regra”. 6 Depois disse àqueles dois: “Ide e ponde em prática o conselho do Senhor, como ouvistes”.

7 Frei Bernardo foi e, como era rico, vender tudo que possuía e fez muito dinheiro. 8 Frei Pedro, porém, era pobre de bens terrenos, mas já era rico em bens espirituais. 9 Também ele fez como lhe fora aconselhado pelo Senhor. 10 Ajuntando os pobres da cidade, distribuíram entre eles o dinheiro arrecadado com a venda de suas propriedades.

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1 Enquanto faziam isso, com a presença do bem-aventurado Francisco, veio um sacerdote chamado Silvestre, de quem o bem-aventurado Francisco comprara pedras para reformar a igreja de São Damião, junto à qual morava antes de ter irmãos companheiros.

2 Vendo-os dispor do dinheiro daquele jeito, o sacerdote, desejoso pelos ardores da avareza, quis que lhe dessem daquele dinheiro e começou a murmurar: — “Francisco, não pagaste bem as pedras que me compraste”. 3 Ouvindo-o murmurar injustamente, o bem-aventurado Francisco que repelira de si toda avareza, aproximou-se de Frei Bernardo e, pondo a mão em seu manto, onde estava o dinheiro, tirou a mão cheia de moedas e deu-as ao sacerdote. 4 Pondo de novo a mão na capa tirou moedas, como já tinha feito uma vez, e deu-as de novo ao presbítero, dizendo: “Agora está tudo pago?”. “Está”, disse ele. 5 Feito isso, o sacerdote voltou alegre para sua casa.

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1 Poucos dias depois, o mesmo sacerdote, inspirado pelo Senhor,  começou a pensar no que o bem-aventurado Francisco tinha feito, dizendo: — “Será que não sou um miserável, eu que, sendo velho, desejo e procuro essas coisas temporais, enquanto esse jovem despreza-as e as aborrece por amor de Deus?

2 “Na noite seguinte viu uma cruz imensa demais, cuja ponta tocava os céus, enquanto o seu pé estava na boca do bem-aventurado Francisco”. 3 Mas os lados da cruz se estendiam de uma extremidade do mundo até a outra.

4 Ao acordar, o sacerdote acreditou que o bem-aventurado Francisco era de fato amigo de Deus e que a religião que iniciara deveria estender-se ao mundo inteiro. 5 Começou assim a temer a Deus e a fazer penitência em sua casa. 6 E pouco tempo mais tarde entrou na Ordem dos frades, onde viveu bem e terminou gloriosamente.

Capítulo 3

Sobre o primeiro lugar onde moraram e sobre a perseguição de seus parentes

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1 Mas depois que Frei Bernardo e Frei Pedro, tendo vendido suas propriedades deram o seu valor aos pobres, como dissemos, vestiram-se como o homem de Deus bem-aventurado Francisco e se associaram a ele.

2 Não tendo casa para ficar, foram e acharam uma igreja pobrezinha quase abandonada, que se chamava Santa Maria da Porciúncula. 3 Construíram ali uma cabana. onde moraram juntos.

4 Oito dias depois, veio a eles de novo um outro chamado Egídio, da mesma cidade, homem devotíssimo e fidelíssimo, a quem o Senhor deu muita graça. 5 De joelhos, com grande devoção e reverência, pediu a Francisco que se dignasse recebe-lo em seu grupo. 6 Ouvindo e vendo isso, o bem-aventurado Francisco ficou contente, e recebeu-o alegremente e de boa vontade. 7 E assim os quatro tiveram uma imensa alegria e um gozo espiritual muito grande.

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1 Depois o bem-aventurado Francisco tomou Frei Egídio e o levou consigo para a Marca de Ancona. Os outros dois ficaram. 2 Enquanto iam, exultavam não pouco no Senhor. 3 Francisco, homem de Deus, exultou com voz claríssima, cantando em francês, louvando e bendizendo o Senhor.

4 Assim transbordava neles uma grande alegria, como se tivessem adquirido o maior tesouro. 5 De fato, podiam alegrar-se muito, porque tinham deixado muitas coisas e julgavam esterco as coisas que contristavam as pessoas, considerando  as amarguras que os amantes do século sofrem nos deleites das coisas seculares, em que se encontra muita miséria e tristeza.

6 Francisco disse ao seu companheiro Frei Egídio: “Nossa Religião vai ser como o pescador, que lança sua rede na água, pegando uma grande quantidade de peixes. 7 Vendo a quantidade de peixes, escolhe os grandes para as suas vasilhas, deixando os pequenos na água”. 8 O referido Egídio estava admirado com aquela profecia que o Santo soltou de sua boca, sabendo que o número dos irmãos era pequeno.

9 O homem de Deus ainda não pregava ao povo.10 Entretanto, quando passavam pelas cidades e aldeias, exortava homens e mulheres a temerem e amarem o Criador do céu e da terra, e a fazerem penitência por seus pecados. 11 Frei Egídio respondia dizendo: — “Ótimo; acreditai nele”.

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1 Os que ouviam comentam entre si: “Quem são estes? O que estão dizendo?”.

2 Alguns deles diziam que eram doidos ou pareciam bêbados. Mas outros diziam: — “Não são palavras de doidos as proferidas por sua boca”. 3 Um deles disse: “Por causa da maior perfeição aderiram ao Senhor ou se fizeram insanos, porque a vida de seu corpo parece desesperada. Andam descalços, vestem roupas vis, usam pouca comida”. 4 Mas ainda não os seguiam. 5 As mulheres moças, vendo-os de longe, fugiam temendo que fossem loucos. 6 Entretanto, embora nos os seguissem, ficavam temerosos por ver a forma de santo comportamento que pareciam ter recebido do Senhor.

7 Depois de ter percorrido aquela província, voltaram ao citado lugar de Santa Maria dos Anjos.

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1 Passados poucos dias, vieram a eles três outros homens da cidade de Assis: Frei Sabatino, Frei João e Frei Morico, o Pequeno, suplicando humildemente ao bem-aventurado Francisco que os recebesse no seu grupo. 2 E ele os acolheu, bondosa e alegremente.

3 Quando iam pela cidade para pedir esmola, mal havia quem lhes quisesse dar; mas diziam-lhes: — “Deixastes as vossas coisas e quereis comer as dos outros”. 4 E assim passavam uma penúria muito grande. 5 Seus pais e parentes também os perseguiam; e os outros daquela cidade, pequenos e grandes, homens e mulheres, desprezavam-nos e riam-se deles como se fossem doidos. Menos o bispo da cidade, e o bem-aventurado Francisco o procurava muitas vezes para pedir conselho.

6 O motivo da perseguição dos pais e parentes e das zombarias dos outros: porque naquele tempo não se via ninguém que abandonasse seus bens e fosse pedir esmola de porta em porta.

7 Certa vez, quando Francisco foi procurar o bispo, este disse-lhe: “Vossa vida me parece dura e áspera demais: não possuir nem ter nada neste mundo”. 8 O santo de Deus respondeu-lhe: “Senhor, se tivéssemos posses, para protegê-las precisaríamos de armas, porque é daí que nascem as questões e muitas brigas, e o amor de Deus e do próximo costuma ficar impedido. 9 Por esta razão decidimos não possuir nada de temporal neste século”.

10 Esta resposta agradou ao bispo.