Anônimo Perusino - Capítulos 4-6

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Capítulo 4

Como admoestou os irmãos e os mandou pelo mundo.

18

1 Mas São Francisco, já cheio da graça do Espírito Santo, predisse o que aconteceria aos seus irmãos. 2 Chamou para si os seis frades que tinha e, na floresta junto da igreja de Santa Maria da Porciúncula (onde eles iam freqüentemente rezar), 3 disse-lhes: — “Caríssimos irmãos, consideremos a nossa vocação, porque Deus nos chamou misericordiosamente, não tanto para a nossa mas para a utilidade e também para a salvação de muitos. 4 Portanto, vamos pelo mundo exortando e instruindo homens e mulheres com a palavra e com o exemplo, para que façam penitência de seus pecados e se lembrem dos mandamentos do Senhor, que já por longo tempo esqueceram”.

5 E disse mais: “Pequeno rebanho, não tenhais medo (Lc 12,32), mas tende confiança em Deus. 6 Não digais entre vós: “Somos homens rudes e sem instrução: como faremos para pregar?” 7 Mas lembrai-vos das palavras que o Senhor dirigiu a seus discípulos: “Não sois vós que falais, mas o Espírito de vosso Pai fala em vós” (Mt 10,20). 8 O próprio Senhor vos comunicará espírito e sabedoria para exortar e pregar aos homens e mulheres o caminho e as obras dos seus preceitos. 9 Encontrareis fiéis mansos, humildes e benévolos, que receberão a vós e a vossas palavras com alegria e amor. 10 Outros encontrareis infiéis, soberbos e blasfemos, resistindo e exprobrando a vós e a vossas palavras. 11 Por isso, colocai em vossos corações que tendes que suportar tudo isso com paciência e humildade”.

12 Quando ouviram estas palavras, os irmãos ficaram com medo. 13 Percebendo o temor deles, o bem-aventurado Francisco disse-lhes: — “Não tenhais medo! 14 Sabei que dentro de não muito tempo virão ter conosco muitos sábios, prudentes e nobres, e ficarão conosco. 15 Pregarão às multidões e aos povos, aos reis e aos príncipes, e muitos se converterão ao Senhor. 16 E o Senhor fará multiplicar e crescer sua família pelo mundo inteiro”.

17 Quando acabou de dizer todas essas palavras, deu-lhes a bênção e eles partiram.

Capítulo 5

Sobre as perseguições que os frades sofreram quando iam pelo mundo.

19

1 Quando os devotíssimos servos de Deus caminhavam pela estrada e encontravam alguma igreja habitável ou abandonada, ou mesmo uma cruz junto do caminho, inclinavam-se para elas com toda devoção, dizendo: 2 Nós te adoramos, Cristo, e te bendizemos, aqui e em todas as tuas    igrejas que há no mundo inteiro, porque por vossa santa cruz remiste o mundo”. 3 Acreditavam e sentiam que tinham encontrado um lugar do Senhor.

4 Quem os via maravilhava-se: “Nunca vimos religiosos vestidos desta maneira”. 5 Mas pareciam homens do mato, por ter roupa e vida diferentes de todos. 6 Entrando numa cidade, num castelo numa casa, anunciavam a paz. 7 Onde encontravam homens ou mulheres, nos caminhos ou nas praças, animavam-nos a temerem e a amarem o Criador do céu e da terra, e para que, recordando os mandamentos dele que tinham esquecido, tratassem de cumpri-los agora.

8 Alguns deles escutavam-nos de boa vontade e com alegria mas outros, pelo contrário caçoavam deles. 9 Eram interrogados por muita gente, e era muito trabalhoso para eles responder a tantas e tão variadas perguntas, porque em coisas novas sempre nascem questões novas. 10 Alguns perguntavam: — “De onde sois?”. Mas outros diziam: “De que Ordem sois?”. 11 Eles respondiam com simplicidade: — “Somos penitentes, e nascemos na cidade de Assis”.12 Pois a Religião dos irmãos ainda não se chamava Ordem.

20

1 Muitos, ao vê-los e ouvi-los, achavam que eram uns impostores ou loucos. 2 Algum deles dizia: — “Não quero recebe-los em minha casa, para que não roubem o que é meu”. 3 E por isso, em muitos lugares, faziam-lhes muitas injúrias. 4 Por isso se alojavam mais vezes nos pórticos ou casas das igrejas.

5 Nesse tempo, na cidade de Florença, dois frades andavam procurando onde se hospedar na cidade mas não conseguiram encontrar nada. 6 Chegando a uma casa, que tinha na frente um alpendre com um forno, disseram um ao outro: “Podemos ficar aqui”. 7 Pediram à dona da casa que se dignasse recebê-los em sua casa. 8 Como ela se recusasse na mesma hora, suplicaram-lhe que os deixasse passar aquela noite junto do forno.

9 Ela consentiu. Mas quando o marido dela chegou e viu os frades perto do forno, disse-lhe: — “Por que deste hospedagem a esses malandros?”. 10 Ela respondeu: — “Não quis alojá-los dentro de casa, mas permiti que ficassem no alpendre: não poderão roubar-nos nada, a não ser lenha”. 11 Por causa dessa desconfiança, não quiseram emprestar aos frades nada para se cobrirem, lhes deram nada para cobrir-se, embora fizesse muito frio naquele tempo.

12 Durante a noite os frades se levantaram para Matinas, e foram à igreja próxima.

21

1 Quando amanheceu, aquela senhora foi à igreja para ouvir missa, e viu-os permanecer em oração, devota e humildemente. 2 Disse consigo mesma: “Se esses homens fossem malfeitores, como disse meu marido, não insistiriam na oração tão reverentemente”.

3 Quando a mulher estava pensando nisso, eis que um homem chamado Guido andava pela igreja, dando esmolas aos pobres que encontrava. 4 Chegando aos frades, queria dar uma moeda a cada um, como aos outros, mas eles não quiseram receber. 5 Então ele disse: — “Mas por que não aceitais as moedas, como os outros pobres, pois vejo que são carentes e necessitados?”. 6 Um deles, chamado Bernardo, respondeu: — “É verdade que somos pobres, mas a nossa pobreza não é grave como a dos outros, porque foi pela graça de Deus e para cumprir se conselho que nos fizemos pobres”.

22

1 Admirado dessas coisas, aquele homem perguntou-lhes se ainda tinham alguma coisa mundo. 2 Eles responderam que tinha tido alguma coisa mas que, por amor de deus, tinham entregado aos pobres.

3 A mulher, vendo que os frades tinham recusado as moedas, aproximou-se deles e disse: — “Cristãos, se quiserem voltar à minha hospedagem, eu vos receberei de boa vontade dentro de casa”. 4 Os frades responderam humildemente: “Que o Senhor te retribua!” 5 Mas quando o homem viu que os frades não podiam encontrar hospedagem, tomou-os, levou-os para sua casa e disse-lhes: 6 “Eis a morada que Deus vos preparou! 7 Ficai aqui como quiserdes”. 8 Mas eles deram graças a Deus, que fora misericordioso para com eles e ouvira o clamor dos pobres. 9 E ficaram ali por alguns dias. 10 E assim, por causa das muitas palavras que ouviu deles e dos bons exemplos que viu, posteriormente deu muitas coisas aos pobres.

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1 Entretanto, apesar de terem sido tratados tão bondosamente por esse homem, entre outras pessoas então os frades eram comumente tidos como vis, e muitos, pequenos e grandes, tratavam-nos e falavam com eles como senhores com seus servos. 2 Embora tivessem roupas miseráveis e paupérrimas, muitos as tiravam de boa vontade. 3 Como ficavam despidos, porque só tinham uma túnica, observaram sempre a forma evangélica, não as reclamando dos que tinham tirado. 4 Mas se eles queriam restituir, movidos de piedade, recebiam de boa vontade.

5 Alguns lhes jogavam barro na cabeça; colocaram dados nas mãos de um deles, convidando-o a jogar. 6 Um frade foi carregado pelo capuz nas costas de um outro, por quanto tempo lhe aprouve. 7 Faziam-lhes essas coisas e muitas outras, afligindo-os, mas não as contamos para que nossa narração não se alongue demais. 8 Julgavam-nos tão desprezíveis, que os afligiam com segurança e audácia, como se fossem malfeitores. 9 Além disso, suportavam muitas tribulações e angústias, com fome, sede, frio e nudez.

10 Mas aguentavam tudo isso com constância e paciência, como tinham sido ensinados pelo bem-aventurado Francisco. 11 Não ficavam tristes nem perturbados mas, como homens que estivessem numa situação de grande vantagem, exultavam nas tribulações e se alegravam, orando solicitamente a Deus por seus perseguidores.

24

1 Quando as pessoas viam-nos exultar no meio das tribulações e tolera-las pacientemente pelo Senhor, sem abandonar uma oração devotíssima, sem receber nem levar dinheiro, como faziam os outros pobres indigentes, e o grande amor que tinham entre si, no qual percebiam que eram discípulos do Senhor, muitos se compungiram em seus corações pela bondade do Senhor; e se aproximavam deles para pedir perdão pelas ofensas que lhes tinham feito. 2 Eles perdoavam de coração, respondendo com alegria: — “O Senhor vos perdoe!” 3 E assim os ouviam, depois, de boa vontade.

4 Alguns rogavam que se dignassem recebe-los em sua companhia, e receberam muitos, pois naquele tempo, como os frades eram poucos, cada um tinha recebido do bem-aventurado Francisco o poder de receber os que quisesse. 5 No tempo determinado, voltaram para Santa Maria da Porciúncula.

Capítulo 6

Sobre o comportamento dos irmãos e o amor que tinham entre si.

25

1 Quando se reviam, ficavam tão repletos de contentamento e alegria espiritual, que não se lembravam mais das adversidades sofridas nem se preocupavam com a sua enorme pobreza.

2 Eram solícitos todos os dias na oração e no trabalho com as próprias mãos, para afugentar toda forma de ociosidade, inimiga da alma. 3 De noite também eram solícitos em levantar-se à meia-noite, segundo a palavra do Profeta: “Levantava-me à meia-noite para te louvar”, rezavam com muita devoção e, freqüentemente, com lágrimas.

4 Amavam-se com afeto profundo, um servia e nutria o outro, como uma mãe serve e nutre seu filho.5 Era tão ardente neles o fogo da caridade que lhes parecia fácil entregar seus corpos não só pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, mas também um pelo outro, de boa vontade.

26

1 Certo dia, quando dois frades caminhavam por uma estrada, encontraram um louco que jogou pedras neles. 2 Um dos frades, vendo jogarem pedras em seu irmão, correu e se pôs na frente das pedradas, preferindo que fosse ferido ele e não seu irmão, pela ardente caridade mútua. 3 Faziam mais vezes coisas dessas e semelhantes.

4 Estavam enraizados e fundamentados na caridade e na humildade, e cada um respeitava o outro como se fosse seu senhor. 5 Quem se destacava entre eles pelo ofício ou pela graça parecia mais humilde e m ais desprezível.

6 Todos também se entregavam totalmente à obediência: quando se abria a boca de quem mandava, preparavam imediatamente seus pés para ir e suas mãos para agir. 7 Qualquer coisa que se lhes mandasse, achavam que era um preceito segundo a vontade de Deus; por isso, cumprir era suave e fácil para eles.

8 Abstinham-se dos desejos carnais e se apresentavam solicitamente para não julgarem a si mesmos.

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1 Se por acaso um deles dissesse uma palavra que pudesse desagradar ao outro, sentia tal remorso que não ficava em paz enquanto não fosse pedir desculpas. Prostrava-se por terra e pedia que o irmão colocasse o pé em sua boca, mesmo que relutasse em fazê-lo. 2 Se ele não quisesse pôr de jeito nenhum, se era um prelado o que tinha dito a palavra, preceituava que o fizesse, se não, fazia que fosse mandado pelo prelado, para afastar deles a malícia e e para que a plena afeição entre eles fosse mantida. 3 E assim cuidavam de opor contra os vícios cada uma das virtudes.

4 Qualquer coisa que tivessem, livro ou túnica, usavam em comum, e ninguém dizia que alguma coisa era sua, como se fazia na Igreja primitiva dos Apóstolos.

5 Embora abundasse entre eles uma enorme pobreza, eram sempre generosos e compartilhavam com todos que o pediam por amor de deus as esmolas que lhes tinham sido dadas.

28

1 Quando iam pelo caminho e encontravam pobres que lhes pediam, alguns deles, não tendo o que dar, dando uma parte de sua própria roupa para os pobres. 2 Um deles soltou o capuz da túnica e o deu e um pedinte; outro arrancou a manga e deu; outros davam um pedaço da túnica, para observar a palavra do Evangelho: “Dá a todo que te pedir” (Lc 6,30).

3 Um dia, veio um pobre à Igreja de Santa Maria da Porciúncula, onde eles moravam, e pediu esmola aos frades. 4 Havia lá um manto, que tinha sido de um deles enquanto ainda estava no século. 5 O bem-aventurado Francisco disse àquele frade, a quem pertencera o manto, que a desse ao pobre. 6 Ele deu, de boa vontade e depressa. 7 Imediatamente, por causa da reverência e devoção que o frade tivera ao dar, pareceu-lhe que aquela esmola subia ao céu e se sentiu repleto por um espírito novo.

29

1 Quando ricos deste mundo os procuravam, recebiam-nos com alegria e benevolência, e os convidavam a afastar-se do mal e fazer penitência.

2 Naquele tempo, os frades pediam solicitamente que não fossem mandados aos lugares onde tinham nascido, para fugir da companhia e familiaridade dos parentes, de acordo com a palavra do Profeta: “Tornei-me um estranho para meus irmãos, um peregrino para os filhos de minha mãe” (Sl 68,9).

3 Alegravam-se muito na pobreza, porque não cobiçavam outras riquezas senão as eternas. 4 Nunca tinham ouro e prata, e embora desprezassem todas as riquezas deste mundo, dinheiro era o que mais calcavam aos pés.

30

1 Certo dia, quando os frades moravam em Santa Maria da Porciúncula, vieram algumas pessoas e entraram na igreja e, sem que eles o soubessem, deixaram moedas sobre o altar. 2 Um frade, entrando na igreja, pegou as moedas que achou e as colocou em uma janela da mesma igreja. 3 Mas um outro frade, achando o dinheiro onde o irmão o pusera, foi contar a São Francisco.

4 Quando o bem-aventurado Francisco ouviu isso, mandou investigar diligentemente qual dos frades tinham posto o dinheiro lá. 5 Quando descobriu, mandou que viesse a ele e disse: — “Por que fizeste isso?”. 6 “Não sabias que eu não só não quero que os frades usem dinheiro, mas que nem mesmo toquem nele?” 7 Ouvindo isso, o frade se inclinou e disse de joelhos a sua culpa, rogando que lhe desse a penitência. 8 Ele mandou que levasse aquele dinheiro para fora da igreja na própria boca até que encontrasse esterco de asno e o pusesse em cima com a boca. 9 E o frade cumpriu isso com diligência. 10 A partir disso, admoestou os frades a que, onde quer que encontrassem dinheiro, desprezassem-no e o tivessem por nada.

11 Desse modo, estavam sempre alegres, porque não tinham por que se perturbar. 12 Pois, quanto mais estavam separados do mundo, tanto mais ficavam unidos a Deus. 13 Estes entraram pelo atalho, estreitaram o caminho e guardaram sua aspereza. 14 Quebraram pedras, pisaram espinhos, e assim deixaram um caminho plano para nós que os sucedemos.