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Como se converteu e vendeu seus bens; e quanto teve de suportar ao ser perseguido pelo pai.

1.

1 No vale de Espoleto e na cidade de Assis, houve um homem chamado Francisco, comerciante de profissão, muito rico de bens passageiros, mas pobre de obras de justiça (Tt 3,5).

2 Indecentemente criado desde a infância nas vaidades do mundo, veio a ser mais insolente que quem o criou.

3 Para que falar tanto? Entregava-se todo à miserável felicidade e gló­ria deste mundo; e, tentando ser nisso mais que os outros, exibia a lascívia de seu coração inquieto em jogos e brinca­deiras, nos modos e na roupa, no modo de falar e nos cânticos impudicos.

4 E como tinha muita esperteza para ganhar dinheiro, ainda que não fosse equilibrado para gastar e poupar, inclinava-se mais para a prodigalidade que para a avareza.

5 Por isso, como parecia afável e humano por esbanjar irresponsavelmente seus bens, arrastava após si uma iníqua cauda(Ap 12,4) de amigos que o seguiam como cabeça e guia pelo caminho da ruína.

6 Assim, cercado pelos bandos de seus cúmplices, andou pelo caminho da perdição até quase a idade de vinte e cinco anos,

7 quando o Senhor, querendo manifestar a glória das suas maravilhas (Sl 110,4), para os pósteros poderem admirar nele a mudança ope­rada pelo Altíssimo (Sl 76,11), e para que os pecadores tivessem esperança de respirar na graça.

2.

1 Ataca-o assim a divina misericórdia primeiro com doenças corporais, para a salvação dele, que estava perdido, e de muitos outros. Depois de enfraquecê-lo com longas enfermidades, constrangeu-o a pensar em coisas diferentes das que costu­mava,

2 de modo que, pelos sofrimentos, come­çou, embora não plenamente, a ser manso, o que não sabia fazer na prosperidade.

3 Por fim, recuperando um pouquinho das forças e podendo andar apoiado numa bengala, quando con­templou a paisagem circunstante teve um certo tédio por tudo que antes achava bonito e desejava; e achava que eram tolos os que o procuravam.

4 Mas como a prosperidade depois do perigo costuma enganar fácil os incautos, ele, que ainda não tinha sacudido dos ombros o jugo (Gn 27,40) da perversa escravidão, quando voltou a ficar bem começou a reprometer-se vaidades mundanas ainda maio­res.

5 Pois, preparando-se um nobre de Assis para partir armado para a Apúlia, ávido de vanglórias e de aumentar as riquezas, Francisco, que já recupe­rara o antigo vigor físico e não era menos ambicioso de riquezas e de glória, procurou associar-se ao cavaleiro, com a leviandade de quem já não se recorda da correção paterna.

6 Mas nisso é preciso admirar bastante a disposição do desígnio de Deus: porque ele que, pelos sofrimentos tinha começado a se tomar dócil bem precisava ser plenamente corrigido por castigos,

7 e pela segunda vez foi admiravelmente revocado de seu propósito, pois era razoável perceber que devia estar mais animado para isso.

3.

1 Pois, uma noite, inteiramente dedicado a refletir sobre a realização da viagem à Apúlia, sua casa, que costumava estar abarrotada de panos para vender, apare­ceu-lhe em visão cheia de apetrechos militares.

2 Perplexo por tão insólito fato, foi-lhe explicado que tudo aquilo seria seu e dos seus cavaleiros.

3 Mas quando acordou, ainda que a visão parecesse aplaudir seu projeto e a visse como um presságio da prosperidade com que o levaria a cabo, começou estranhamente a esfriar em seu plano;

4 de modo que já precisou forçar a si mesmo para ir adiante, até que, não muito depois, quase recusou ir para a Apúlia.

5 Assim, por causa de sua mudança, o comandante do novo batalhão compreendeu que a referida visão se referia a algo muito diferente do que pensara.

6 Assim, tendo recebido as annas celestes que usava mais tarde para combater virilmente contra todas as tentações, começou a mudar desde então plenamente os antigos costumes.

7 Por isso, afastando-se já to tumulto dos negócios públicos, tornou-se um mercador evangélico que ia em busca de boas pérolas, até encontrar uma preciosa; para ver o que era mais agradável a Deus para começar, e se entregou ao trabalho de meditar sobre as diversas virtudes.

8 Assim, quando se retirou ao campo do Senhor para meditar, lá descobriu um tesouro escondido e o guardou, resolvendo comprá-lo com o campo, depois de ter vendido tudo (Mt 13,44-46).

4.

1 Depois, procurou para o novo plano um conselheiro novo: Deus, consultando só a ele e a nenhum mortal para saber o que tinha que fazer, e explicou o que pretendia.

2 Mas, desejando partilhar sua felicidade só com um amigo mais familiar que os outros, chamava-o frequentemente para os lugares mais secretos para expressar de vez em quando em palavras a alegria de seu coração.

3 Sem desvendar totalmente o projeto, falava-lhe em enigmas, dizendo que tinha descoberto um grande e precioso tesouro.

4 Esse homem se congratulava muito com ele e, sempre que era chamado, saía e conversava sobre o tesouro em toda parte, com a maior boa vontade.

5 Movido por um espírito novo, ele entrava muitas vezes numa gruta, enquanto seu companheiro esperava fora, sem saber absolutamente saber o que se passava lá dentro;

6 ali, chorando, pedia ao Pai celeste em segredo (Mt 6,6) que, mostrando-lhe o caminho, revelasse melhor a sua vontade.

7 Persistindo em contínua oração, infligia-se a si mesmo pesadas penitências e, enquanto não soubesse divinamente por onde devia começar, afetos inoportunos que se sucediam uns aos outros não lhe davam sossego.

8 Pois nele se alternavam a alegria pela doçura do espírito que experimentava, uma bem pesada dor pelos pecados passados, não pouco medo dos futuros e um fervoroso desejo das coisas que decidira levar a cabo.

5.

1 Finalmente, tendo invocado mais plenamente a misericórdia divina, mereceu ser ouvido no que queria e ser instruído com segurança por um indício do céu.

2 Por isso, foi depois preenchido por tanta alegria que, não podendo mais conter-se, deixou transparecer verbalmente alguma coisa, mesmo sem querer: que não queria ir mais para a Apúlia mas realizaria grandes coisas em sua própria terra natal.

3 Por isso, estando todos admirados e querendo saber se queria casar-se, respondeu que se casaria com a esposa mais sábia, mais nobre, mais amável e bonita que alguém jamais tinha visto.

6.

1 Uma vez confirmado pelo dom divino, ele não adiou o cumprimento do piedoso desejo,

2 mas, na primeira oportunidade que se ofereceu, ergueu-se alegre, armou-se confiantemente com o sinal da cruz e, tomando consigo tecidos preciosos para vender, foi para a cidade vizinha, chamada Foligno.

3 Tendo lá vendido tudo que o que levara, inclusive o cavalo que montara, voltou a pé, carregado de dinheiro que , imediatamente fervoroso na obra de Deus, resolveu destinar aos piedosos usos dos pobres e a piedosas esmolas para outras necessidades.

4 Mas aquele dinheiro já lhe machucava o coração que estava livre de cuidados: não agüentando mais o peso de uma coisas que para ele era areia, teve pressa de largá-lo quanto antes.

5 Encontrou perto de Assis suma igreja, construída havia tempo em honra de São Damião, mas já quase arruinada de tão velha.

6 Logo, comovido por sua necessidade, entrou nela reverentemente.

7 Lá encontrou um pobre presbítero: mostrou-se primeiro reverente para com ele, beijando-lhe as mãos, e depois lhe ofereceu o dinheiro para restaurar as paredes da igreja.

8 Vendo o sacerdote quem era o homem, que até pouco antes sabia que se entregava totalmente ao mundanismo, ficou muito admirado com o fato e, achando que estava sendo enganado por ele, não recebeu o dinheiros.

9 De­pois que ele explicou melhor seu propósito, mal acreditando, aceitou seus insistentes pedidos de morar com ele; mas, por medo dos pais, recusou absolutamente rece­ber o dinheiro.

10 Vendo que ele não aceitava, o verdadeiro desprezador do dinheiro atirou-o numa janela, desprezando-o como pó.

7.

1 Seu pai, não sabendo o que acontecera, ficou muito preocupado, até que, depois de muito pro­curar, descobriu que o filho fora morar misera­velmente naquele lugar.

2 Então, não pouco perturbado diante do repentino acontecimento, convocou os amigos e os conhecidos (Lc 15,9) e, sem demora, correu para o local.

3 Mas ao ouvir a chegada e as ameaças dos perseguidores, o novo soldado de Cristo permitiu que dessem lugar à ira (Rm 12,9) e, para não ser visto pelo pai, escondeu-se numa cova que preparara antes para isso.

4 Nela ficou quase um mês inteiro, recebendo talvez de uma única pessoa que conhecia o lugar uma ajuda clandestina.

5 Só saía de lá raramente e só por necessidade, e não cessava de implorar a divina clemência com jejuns e lágrimas (Joel 2,12), para que se dignasse livrá-lo das mãos dos perseguidores (Sl 30,16).

6 Enquanto assim rezava em trevas, foi-lhe infundida uma ale­gria admirável e jamais experimentada, de modo que de repente se sentiu animado por tal constância de espírito que saiu a pú­blico, não só desprezando os perseguidores, mas tam­bém se censurando severamente pela indolência e covardia de ficar tanto tempo.

7 Quando os conhecidos o viram tão mudado, pálido e emagrecido, não atribuíram isso à graça, mas à loucura e, insultando-o de forma miserável, come­çaram a atirar-lhe barro e pedras.

8 Mas o homem de Deus (Jz 13,8) sem se abater por nenhuma injúria, passou entre eles como se tivesse os ouvidos tapados e dando graças àquele que do alto o confortava.

9 Por fim, chegou aos ouvidos do pai que o filho aparecera naquelas condições, e ele acorreu depressa, não como pai, mas como uma fera, começando a endoidecer contra ele mais do que os outros.

8.

1 Depois, arrastou-o para casa de forma muito humilhante, querendo fazê-lo desistir do projeto por meio de castigos: primeiro, aplicou insultos e açoites com crueldade e, a seguir, lan­çou-o sem dó e acorrentado no cárcere.

2 Mas, quanto mais o peso da tribulação oprime o soldado de Cristo, tanto mais forte e firme ele se torna;

3 e as adversidades não adiantam para afastar do caminho da retidão quem tem o Senhor como refúgio nas tribu­lações (Sl 31,7).

4 Um dia, aconteceu que, por causa de afazeres familiares, seu pai se ausentou de casa. Então a mãe, que não aprovava o com­portamento do marido, com palavras suaves tentou demover o filho do seu propósito.

5 Quando viu que nada conseguiria, movida de materna compaixão, soltou secretamente as correntes e deixou o filho ir embora livre.

6 Ele, já provado em sua tentação, ficou mais seguro que de costume e, dando graças ao Senhor onipotente, com grande liberdade de espírito voltou ao lugar onde estivera antes.

7 Quando voltou para casa e ficou sabendo disso, o pai, irado, injuriou a esposa; e não contente, transtor­nado, correu atrás do filho.

8 Queria que ele, se não conseguisse fazê-lo mudar de idéia, pelo menos se afastasse de uma vez dos confins daquela terra.

9 Mas, quando ele chegou, o fi­lho foi-lhe ao encontro, livre e corajoso, já sem ce­der à da fúria do pai, como fizera antes, mas declarando que, por Cristo, estava alegremente disposto a sofrer ainda mais. ­

10 Diante de sua inflexível constância, o pai passou finalmente a exigir o dinheiro;

11 depois que o encontrou, e retirou de onde o santo homem o jogara, começou a tratar o filho com maior man­sidão, pois, tendo satisfeito um pouco a sede da avareza, acalmou também o furor do espírito.

9.

1 Depois disso, levou-o ao bispo do lugar, para que na sua presença lhe restituísse tudo que tinha e entregasse em suas mãos todos os seus bens.

2 Pronto e alegre, ele se ofereceu a fazer isso e, antes mesmo que lhe fosse pedido, despiu todas as roupas que tinha, sem guardar nem os calças, e entregou-as ao pai.

3 Desse modo, ficando completamente nu diante de todos, mostrou que era um exilado no mundo.

4 O bispo, porém, admirando todo o seu fervor, reconheceu que aquilo não podia acontecer sem a vontade de Deus.

5 E daí por diante, disposto a ajudá-lo com paterno amor, acolheu-o entre seus braços, cobrindo-o com o manto que vestia.

6 Já então, nu, o homem de Deus imitou àquele que estava nu na cruz, cumprindo perfeitamente o conselho de renunciar a tudo: nada de terreno, a não ser a parede da carne, separava-o da visão de Deus.

10.

1 Um dia, depois que o bem-aventurado Francisco se livrou da cruel perseguição paterna, ele, zeloso por uma nova lei, andava seminu por um bosque, cantan­do os louvores do Senhor em língua francesa e, de repente, caiu nas mãos dos ladrões (Lc 10,30).

2 Perguntaram-lhe, ferozes, quem ele era. Sem medo, ele respondeu profeticamente: “Eu sou o arauto do grande Rei! (Sl 47,3). Que vos importa?”

3 Mas eles, indignados, depois de açoitá-lo, lançaram o servo de Deus numa cova cheia de neve e, insultando o futuro pastor do rebanho do Senhor, disseram: “Fica ali, mísero arauto de Deus!”

4 Quando os criminosos se afastaram, ele saltou alegre do buraco e continuou a louvar o Criador de tudo com voz mais alegre.

11.

1 Por fim, ele, acostumado a vestir roupas preciosas, apresentou-se à porta de uma casa de monges, ves­tindo apenas uma camisa pobre. Ali, nem reconhe­cido nem considerado, deixaram-no ir à cozi­nha tomar um pobre alimento;

2 até que, visto que ninguém olhava com compaixão para a sua nudez, depois de alguns dias, forçado pela necessidade, teve que ir embora.

3 Mais tarde, porém, quando a fama da sua santidade se espalhou por toda parte, o prior daquele lugar, gravemente arrependido por terem cuidado mal de um homem daqueles, procurou-o e humildemente pediu perdão para si e para seus companheiros.

4 Saindo do referido mosteiro, o pobrezinho de Jesus Cristo chegou à cidade de Gubbio, onde encontrou um antigo amigo que, em nome da velha amizade, cobriu-lhe a nudez com uma tú­nica pequena.

12.

1 Depois disso, o humilde desprezador de si mesmo, já não se importando com o desprezo dos outros, foi morar com os leprosos.

2 Servindo-os com grande devoção, lavava-lhes as feridas e não se aborrecia por limpar o seu pus.

3 Antes disso, detestava tanto essas coisas que ao vê-los de perto ou mesmo deparando de longe com as suas casas, costumava tapar o nariz com as mãos.

4 Mas quando o Senhor o visitou com a graça, estando ainda em vestes seculares, apareceu de repente um leproso.

5 Embora, costumasse ficar horrorizado com seu aspecto, fez força contra si mesmo, venceu-se e, aproxi­mando-se com decisão, o beijou.

6 A partir de então, ardendo mais fervorosamente por se despre­zar, começou a fazer uma guerra constante contra si mes­mo, até que do alto lhe foi dado obter a completa vi­tória.

7 Por isso, como ele mesmo testemunhou mais tarde, teve misericórdia com os leprosos que, quando ainda estava em pecados, nem podia ver.

8 Mas sempre olhou com um piedoso sentimento de compaixão os outros pobres e aflitos quando ainda entregue ao mundo, e aos que lhe pediam por amor de Deus, estendia com prazer a mão da misericórdia.

9 Uma vez, repreendendo contra seu costume um pobre que lhe pediu por Deus, ficou logo compungido e sentiu grande dor,

10 porque achava indigno demais negar alguma coisa a alguém que pedia em nome de tão grande Rei.

11 Por isso, fez o propósito de jamais negar algo que os pobres pedissem por Deus. E tratou de cumprir isso quanto esteve ao seu alcance.

12 Ainda que, com isso, já dê para avaliar quanto era movido pelo espírito de compaixão pelos pobres, depois de sua conver­são, mais adiante vamos mostrar isso um pouquinho melhor.

13.

1 Embora o santo ainda ignorasse completamente o que lhe aconteceria no futuro, a primeira entre outras obras de piedade que empre­endeu foi a restauração da igreja de São Damião, onde já tinha morado.

2 Com a cooperação do Senhor (Mc 16,20), concluiu em pouco tempo esse trabalho, que iniciara sob a urgência de uma iminente ruína.

3 Esse era o lugar justamente memorável em que, por obra do mesmo santo, pouco depois de seis anos depois de sua conversão, teve seu feliz início a religião das senhoras virgens e santas, tão rica de tantas virtudes;

4 a qual, louvável pela prerrogativa de não pouca santidade, o Senhor estendeu hoje magnificamente por diversas partes da Itália.

14.

1 Nesse meio tempo, mudando de hábito, o servo de Deus mudou-se para outro lugar, não longe de Assis, onde começou a reconstruir outra igreja, também em ruínas, e não parou, en­quanto não terminou o trabalho.

2 Depois, passou a um terceiro lugar, chamado Porciúncula, não longe da mesma cida­de, onde havia uma igreja construída em honra da gloriosíssima Mãe de Deus Maria, então abandonada e igualmente em ruínas.

3 Com­padecido por sua ruína, mas levado também pela devoção especial que tinha pela Bem-aventurada Virgem, ficou morando ali até o terceiro ano de sua conversão, quando a igreja já estava reparada.

4 Não creio que o santo tenha construído essas três igrejas, sem um mistério de algo mais importante.

5 Creio que, por permissão de Deus, foi figurado previamente o que mais tarde esse homem simples fez tão maravilhosamente, iniciando suas três célebres Ordens, que levou à perfeição com sua vida e palavra. Sobre isso falaremos brevemente quando for a hora.