Nenhum sub-capítulo encontrado

O que suportou, fez e disse antes de morrer; seu fervor e sua paciência; seu trânsito e as exéquias.

64.

1 Passados dezoito anos de sua conversão, o beatíssimo pai Francisco pouco ou nenhum descanso dera a seu corpo, mas circulando a pregar incansavelmente por diversas partes do mundo, jamais cessara de afligi-lo com inusitadas e sempre novas formas de disciplina;

2 e ainda que tivesse corrido seus dias passados entre muitos infortúnios, nos dois últimos anos de vida que lhe restavam, começou a ser molestado por mais graves e mais contínuas enfermidades.

3 Embora pressentisse que sua carne se aproximava inevitavelmente da corrupção natural e estivesse chegando ao fim, não dei­xou de mantê-la, quanto podia, sob a lei do costumeiro rigor.

4 O respeitável homem tinha submetido tanto a si mesmo, estabelecera tanta harmonia entre corpo e espírito que sua carne mal sen­tia repugnância em tudo que o espírito mandava.

5 Por isso o homem santo, de espí­rito sempre prontíssimo para toda boa obra, que ainda fervia de tanto zelo pelas almas, sem desistir ainda de procurar a salvação do próximo pela pregação, fez que carregassem pelas cidades e aldeias (Lc 8,1), montando num asno, o seu corpo quase morto.

65.

1 Os frades o aconselhavam suplicando com toda a insistência que, em suas enfermidades, permitisse ser ajudado pelos médicos, porque viam que ele piorava dia após dia.

2 Mas ele recusava terminantemente atender nisso aos frades, pois se nunca tivera muito cuidado pelo corpo, ago­ra, o que mais desejava era ser desatado e estar com Cristo (Fl 1,23).

3 Na verdade, ainda que trouxesse no seu corpo os estig­mas do Senhor Jesus (Gl 6,17), como era necessário que nele se com­pletasse o que faltava aos sofrimentos de Cristo (Cl 1,24) começou a acrescentar aos outros males também uma gravíssima doença dos olhos.

4 Então, o mencionado Frei Elias, que ainda em vida ele esco­lhera como sua mãe e tinha colocado como pastor à frente do seu rebanho, obrigou-o e convenceu a deixar-se medicar, temendo que, talvez, por negligência viesse a perder totalmente a vista.

5 O santo obedeceu-lhe humildemente como a um pai e, desde então, permitiu que lhe pusessem os remédios nos olhos, ainda que de nada servissem, pois o mal se agravava.

6 Finalmente, para cuidar desta enfermidade foi levado a Rieti, onde, nesse tempo, morava temporariamente o Papa Honó­rio III, e foi acolhido honrosa e devotamente pela Cúria Romana.

7 Mais familiar a ele que os outros foi o senhor Hugo, en­tão bispo de Óstia, a quem o homem santo, com o consentimento de Honório, escolhera entre todos como pai e senhor, confiando à sua prote­ção ele mesmo e toda a sua Ordem, submetendo-se à sua obediência.

8 Movido de espírito profético, tinha predito não só com palavras, mas também com fatos e de muitos outros modos, que ele receberia a honra apostólica.

66.

1 Por isso ele nutria pelo santo um afeto admirável e servia o pobrezinho de Jesus Cristo como um servo ao senhor.

2 Mais tarde, elevado à dignidade apostóli­ca, testemunhava que nunca tivera qualquer perturbação que não desaparecesse de sua mente só em ver ou em ouvir falar o homem de Deus, e que lhe voltava de repente a suavidade da serenidade e a doçura da alegria.

3 Por isso, sempre que o via, o reverenciava como a um apóstolo de Cristo (1Cor 1,1).

4 Assim, também ele admoestou com insistência o bem-aventurado Francisco a cuidar de si mesmo; e o santo humildemente lhe obedeceu nisso como em todas as outras coisas.

5 Entretanto, nada absolutamente ajudou-o a melhorar na saúde, apesar de terem sido feitas cauterizações na cabeça, cortadas veias, usados colírios e emplastros. Pelo contrário, por excesso de medicamentos, o mal se agravou.

6 Mas ele mesmo suportou todos os incômodos corporais com toda paciência e ação de graças e, sem se importar com as moléstias de seus membros corporais, confortado, voltou todo o seu pensamento para Deus.

7E para poder dedicar-se à íntima consolação com maior liberdade, confiou-se à guarda de quatro irmãos,homens de virtude (cf. 1Mc 5,50), que não só o assistiram nas suas necessidades corporais, mas também para manter a tran­quilidade de espírito.

67.

1 Não mediocremente realizado pela graça de tantas virtudes, o glorioso pai julgava ter passado inutilmente os seus dias;

2 e, em­bora estivesse incapacitado para executar qualquer movimento externo, incitava a si mesmo a triunfar na nova batalha.

3 Pois dizia: “Irmãos, comece­mos a servir a Deus. Comecemos e continuemos, porque até ago­ra progredimos muito pouco”.

4 Queria voltar de novo ao tempo da simplicidade, queria servir de novo humildemente os leprosos e ir para lugares muito distantes da convivência dos ho­mens.

5 Queria eximir-se de qualquer responsabilidade de go­verno, porque, por muitos motivos, julgava perigoso, sobretudo nesse tempo, assumir o lugar de prelado; porque é muito mais útil ser governado do que governar.

6 Numa ocasião em que fez uma parada (cf. Mt 25,5) em Sena, quase no sexto mês antes de sua morte, sofrendo em todo o corpo mais do que de costume, parecia que se aproximava do fim.

7 Ra­pidamente Frei Elias acorreu de longe; ao chegar, encontrou-o res­pirando com dificuldade e, por isso, levou-o consigo a Celle di Cortona.

8 Depois de ter ficado aí pouco tempo, como a doença se agravou, pediu para ser levado a Assis.

9Depois que chegou, uma grande ale­gria invadiu toda a cidade, e, dando graças (Ef 5,20), louvavam unanimemente o Senhor, porque esperavam guardar para si tão grande tesouro (Tb 12,8; Mt 13,44).

68.

1 Levado para o palácio do bispo de Assis, pouco tempo depois, começou a perder todas as forças do corpo.

2 E sofria tão atrozmente em todos os membros que, quando lhe perguntaram se preferia sofrer o martírio por um verdugo, respondeu que a paixão daqueles três dias, embora recebida com prazer como vontade de Deus, era mais graves que qualquer martírio.

3 Vendo que já se aproximava o último dia da vida, que por revelação ele já conhecia há dois anos, chamou a si os frades que quis (Mc 3,13) e os abençoou um a um como lhe era dado do alto (Jo 19,11).

4 Com seus olhos escurecidos, já não podia enxergar. Então, como outrora o patriarca Jacó, cruzou os braços e pôs a direita (Gn 48,14) sobre o frade que esta­va à esquerda

5 e perguntou quem era. Quando compreendeu que era Frei Elias (que, como se disse, ele colocara em seu lugar) res­pondeu que era assim que ele queria.

6 Abençoou primeiro a ele e depois, na sua pessoa, todos os outros frades e, invocando sobre ele todo o bem, confirmou-o com todas as bênçãos e no fim acrescentou:

7 “Adeus a todos, meus filhos, no temor do Senhor e permanecei sempre nele (Tb 2,14), porque a tribulação se aproxima de vós e vai ser enorme a tentação que virá sobre vós.

8 Felizes os que perse­verarem (Mt 10,22) no que iniciaram”.

9 Então, pediu para ser levado, sem demora, para Santa Maria da Porciúncula, pois queria entregar a alma ao Senhor no mesmo lugar em que, como se disse, tinha conhecido com clareza o caminho da verdade (Sl 118,30).

10 Tinha ordenado aos frades que guardassem aquele lugar com toda a reverência e honra.

11 Dizia que aquele lugar era particularmente adaptado para os louvores divinos e para a oração e que era frequentemen­te visitado pelos espíritos celestes.

69.

1 Repousou poucos dias no local desejado. Quando sentiu que a hora da morte se aproximava, chamou a si dois frades, aos quais ordenou que alegremente cantassem ao Senhor os louvores pela sua morte iminente.

2Ele, porém, da forma que pôde, entoou este salmo: Com minha voz clamei ao Senhor, com minha voz supliquei ao Senhor (Sl 141 ,2-8).

3 Um dos frades presentes, mais solícito que os outros, disse-lhe: “Bom pai, teus filhos vão ficar sem pai!

4 Lembra-te dos que dei­xas na orfandade e, perdoadas todas as culpas, digna-te consolar tanto os presentes quanto os futuros com tua santa bênção”.

5 O tão piedoso pai respondeu: “Meu filho, já estou sendo chamado pelo Senhor!

6 Perdôo todas as ofensas e culpas dos meus irmãos, presentes ou ausentes; e absolvo-os como posso. E tu, meu filho, notificando isso aos outros, de minha parte, abençoa-os todos”.

7 Depois, pediu que se lesse o Evangelho segundo João no ponto que começa: Antes do dia da festa da Páscoa (Jo 13,11); quis tam­bém que lhe colocassem o cilício e o aspergissem com cinza.

8 E as­sim, cercado pelos filhos que choravam, o santo pai adormeceu felizmente no Senhor (At 7,60).

70.

1 Um deles, um discípulo especial, homem célebre por grande fama, cujo nome não é dito porque, como ainda está vivo, ele não gostaria de ter tanta honra, viu sua gloriosa alma livre da carne, em forma de grande e fúlgida estrela.

2 Repito, viu-a subir diretamente até o céu (Js 8,20), sobre as muitas águas (Sl 28,3), carregada por uma nuvenzinha branca (Ap 14,14).

3 Assim, aquele que pelo desprezo de si esmagou com as mãos a espiga (Dt 23,25; Mt 12,1) do seu corpo na eira terrena desta pe­nosa vida, livre da palha, entrou como grão puro no celeiro (Mt 3,12) do sumo Rei.

4 Dessa forma, morto para a vida mortal a fim de viver eternamente, uniu-se ao pão vivo (Jo 6,41) aquele que sa­ciara a.esfomeada turba de Cristo no celeiro da pobreza para que não desfalecesse no caminho (Mt 15,32).

5 Era justo que fosse visto subir em forma de estrela sobre as muitas águas (Sl 28,3), carregado por uma nuvem branca (Ap 14,14); pois afinal, aquele que era retirado das águas (Sl 17,17), livre dos prazeres terrenos, iluminara multidões de pessoas tanto com os milagres quanto com a sua vida e doutrina.

6 Ele abrira o caminho luminoso que conduz à glória para os que, como ce­gos, vagavam pelo amplo caminho da perdição e alargara o caminho da vida (Mt 7,13.14), para que o seguissem juntos aqueles poucos que antes o percorriam e o temiam porque era estreito.

7 Por isso, agora reina rico na pátria conquistada com uma pobreza transitória; reina tendo abaixo de si os reis deste mundo, que têm como riqueza apenas o miserável vazio das coisas que perecem.

71.

1 Houve, então, um grande ajuntamento do povo (At 21,30) da cidade de Assis, louvando a Deus (Lc 2,13) em unânime alegria, porque confiava a eles tão grande tesouro.

2 De início, era grande o pranto dos filhos pela perda de tão grande pai; mas, logo depois, mu­dou-se em canto de alegria.

3 Pois viam a novidade criada pelo Senhor sobre a terra (Jr 31,22). Viam um milagre digno de alegria e não de choro: o sagrado corpo ornado com as chagas de Cristo.

4Viam seus membros, antes doentes e rígi­dos, agora facilmente flexíveis, conforme a vontade de quem os tocasse.

5 E também a carne, antes dura e lívida, reassumiu a de­licadeza de uma criança, mostrando um admirável candor, como se, com sua grande beleza, apresentasse uma imagem do corpo glorificado.

6 Era uma glória ver na carne tão branca os sinais da abertura dos cravos (Jo 20,25): cravos negros como o ferro, formados de carne, no meio dos pés e das mãos, e o lado direito marcado pelo sagrado sangue.

7 Os filhos choravam pela alegria do coração (Lm 5,15) e beijavam no pai os sinais do sumo Rei.

72.

1 Ficou solene a noite em que o santo morreu pelos louvores divinos, pela multidão de pessoas e pela claridade das tochas. Chegada a manhã (Jo 21,4), unindo-se a todos os que tinham acorrido em grande número das localidades vizinhas, reuniu-se naquele lugar toda a comunidade da cidade de Assis.

2 Tomaram, então, o sagrado corpo e, entre hinos e louvores e ao som de trombetas, o carregaram em triunfo para realizar solene­mente as exéquias, tomando nas mãos ramos de árvores (Jo 12,13; Mt 21,8).

3 Carregando o piedoso pai, os filhos pararam primeiro na igreja de São Da­mião, que, como foi dito, foi a primeira a ser reconstruída

4 e o mostraram às suas filhas, as Senhoras Pobres e santas virgens que ele havia plantado ali.

5 E eis que a piedosa mãe dela, a primeira planta dessa religião, Clara de fato e de nome, admitida para ver o corpo do tão amado pai com suas filhas, começou a chorar sobre ele (Zc 12,10) abatida demais, porque, entre todos os mortais, perdia um consolo tão irrecuperável.

6 Choraram também as outras, quanto lhes permitiu o pudor virginal; depois, cada uma beijou suas mãos ornadas com as mais preciosas jóias.

7 Afinal, tendo que levá-lo embora, como era preciso, separa­ram-se com enorme dor.

8 O santíssimo corpo foi, então, levado para a cidade e, por fim, sepultado no lugar em que ele estudara quando era criança, e, mais tarde, pregara pela primeira vez,

9 para que o feliz início, o meio mais feliz e o felicíssimo final pudessem con­venientemente confluir em um ponto alto de glória.