Compilação de Assis - Capítulos 111-120

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Capítulo 111

1 Certa ocasião, o bem-aventurado Francisco estava no eremitério de Santo Eleutério perto de um castro chamado Quintiliano, na região de Rieti.

2 Como não usava senão uma túnica, certo dia, por causa do grande frio e da grande necessidade, remendou sua túnica e a túnica de seu companheiro por dentro com alguns retalhos, de modo que seu corpo começou a se consolar um pouco.

3 Pouco depois, quando voltava um dia da oração, disse com grande alegria a seu companheiro:

4 “Eu tenho que ser forma e exemplo de todos os frades, porque ainda que meu corpo tenha necessidade de uma túnica remendada, preciso pensar nos meus frades, para os quais isso também é necessário, e eles talvez não tenham nem podem ter

5 Por isso tenho que condescender com ele e preciso sofrer as mesmas necessidades que eles sofrem,, para que eles, vendo isso, consigam suportar com mais paciência”.

6 Mas nós, que estivemos com ele, não poderíamos dizer quantas e quão grandes necessidades ele negou a seu corpo na comida e na roupa, para dar bom exemplo aos frades e para que suportassem suas necessidades com maior paciência.

7 E nisso teve sempre o seu maior e mais importante cuidado bem-aventurado Francisco, principalmente depois que os frades começaram a se multiplicar e ele se demitiu do ofício de prelado, para ensinar os frades mais com obras do que com palavras o que deviam fazer e o que deviam evitar.

Capítulo 112

1 Por isso, em certa ocasião, considerando e ouvindo que alguns frades davam mau exemplo na religião, e também que os frades tinham se afastado do ponto mais alto de sua profissão,

2 tocado por uma dor interior do coração, disse uma vez na oração ao Senhor: “Senhor, eu te recomendo a família que me deste”.

3 E lhe foi dito pelo Senhor: “Diz-me, por que te contristas tanto quando algum frade sai da Religião e quando os frades não andam pelo caminho que te mostrei?

4 Diz-me também: quem plantou a religião dos frades? Quem faz o homem converter-se para fazer penitência nela?

5 Quem dá a virtude de nela perseverar? Não sou eu?”.

6 E foi-lhe dito em espírito: “Eu não te escolhi porque eras um homem letrado e eloquente para cuidar de minha família,

7 mas te escolhi simples, para que possas saber, tanto tu quanto os outros, que eu vou vigiar pelo meu rebanho; mas eu te coloquei como um sinal para eles, para que possam ver em ti as obras que eu faço em ti e também as façam.

8 Os que andam pelo meu caminho têm a mim e me terão mais abundantemente.

9 Mas dos que não querem andar pelo meu caminho, vai ser tirado o que parecem ter.

10 Por isso eu te digo, não fiques tão triste, mas age como tens de agir, faz o que tens que fazer, porque eu plantei a religião dos frades na caridade perpétua.

11 Por isso fica sabendo que eu a amo tanto que,s e algum frade, voltando ao vômito, morrer fora da religião, colocarei outro na Religião para que receba a coroa dele no seu lugar;

12 e se fosse o caso que esse ainda não tivesse nascido, eu o farei nascer.

13 E para que saibas que amo espontaneamente a vida e a religião dos frades, imagine que em toda a vida e religião dos fardes não sobrassem mais do que três irmãos, eu não os abandonarei nunca”.

14 E quando disse essas palavras o bem-aventurado Francisco ficou com seu ânimo consolado, porque estava se entristecendo demais quando ouvia dos frades algum mau exemplo.

15 E embora não pudesse conter-se de uma vez, ficando sem se contristar quando ouvia algum mal, todavia, depois que foi confortado dessa forma pelo Senhor, recordava-o em sua memória e contava a seus companheiros.

16 Por isso o bem-aventurado Francisco dizia muitas vezes aos frades nos capítulos e também nas suas conversas: “Eu jurei e estabeleci que ia observar a Regra dos frades,e todos os frades se obrigaram a isso de maneira semelhante;

17 dessa maneira, desde que me demiti do ofício dos frades, aliás por causa de minhas doenças e para maior utilidade de minha alma e de todos os frades, não tenho outra obrigação com os frades a não ser a de dar bom exemplo.

18 Pois isso eu aprendi com o Senhor, e sei na verdade porque, mesmo que a doença não me desculpasse, a maior ajuda que posso dar à religião dos frades é entregar-me todos os dias à oração por ela junto do Senhor, para que ele a governe, conserve, proteja e defenda.

19 Pois nisto me obriguei ao senhor e aos frades, isto é, que se algum dos frades perecer por meu mau exemplo, quero ter que prestar contas ao Senhor”.

20 Por isso, embora algum frade lhe dissesse de vez em quando que devia intrometer-se nos assuntos da religião, ele respondia a essas palavras dizendo:

21 “Os frades têm a sua Regra, e até fizeram um juramento; e para não terem desculpa, depois que aprouve ao Senhor estabelecer que eu fosse seu prelado, eu jurei do mesmo modo diante deles e quero observar até o fim.

22 Por isso, uma vez que os frades sabem o que devem fazer e também o que devem evitar, não me resta senão ensina-los por obras, porque para isso fui dado a eles em minha vida e depois de minha morte”.

Capítulo 113

1 Certa vez, quando o bem-aventurado Francisco ia pregando por uma província, aconteceu que se encontrou com um homem pobrezinho; e, considerando sua grande pobreza, disse ao seu companheiro:

2 “A pobreza desse homem traz-nos muita vergonha e repreende bastante a nossa pobreza”.

3 O companheiro respondeu dizendo: “Como, irmão?”.

4 E ele: “Para mim é uma grande vergonha quando encontro alguém que é mais pobre do que eu, pois escolhi a santa pobreza como minha senhora, minhas delícias e riquezas espirituais e corporais;

5 E essa fama se espalhou por todo o mundo: que eu professei a pobreza diante de deus e dos homens.

6 Por isso tenho que me envergonhar quando encontro alguma pessoa mais pobre do que eu”.

Capítulo 114

1 Quando o bem-aventurado Francisco foi a eremitério dos frades perto de Rocca di Brizio, para pregar às pessoas daquela província, aconteceu naquele dia em que devia pregar que um homem pobrezinho e enfermiço veio a ele.

2 Quando o viu, começou a considerar sua pobreza e enfermidade, de modo que, movido de piedade, vendo a pobreza e enfermidade dele, começou a conversar com seu companheiro sobre sua nudez e doença, com pena dele.

3 E seu companheiro disse-lhe: “Irmão, é verdade que este homem é bem pobre, mas talvez em toda a província não haja outro mais rico que ele na vontade”.

4 O bem-aventurado Francisco repreendeu-o porque não tinha falado bem, e por isso disse sua culpa.

5 E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Queres fazer, por isso, a penitência que vou te indicar?”. Ele respondeu: “De boa vontade”.

6 Disse-lhe então: “Vá tirar tua túnica, vá nu diante do pobre, lança-te aos pés dele e diz-lhe como pecaste contra ele, porque fizeste uma detração;

7 e diz-lhe que ore por ti, para que deus te perdoe”.

8 Por isso ele foi e fez tudo como lhe dissera o bem-aventurado Francisco; feito isso, levantou-se, vestiu a túnica e voltou para o bem-aventurado Francisco.

9 E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Quer que te diga como pecaste contra ele, e até contra Cristo?”.

10 E disse: “Quando vês um pobre deves pensar naquele em cujo nome ele veio, isto é, Cristo, que veio assumir nossa pobreza e enfermidade;

11 pois a pobreza e a doença deste homem é como um espelho para nós, no qual devemos espelhar e considerar com piedade a pobreza e enfermidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que carregou em seu corpo pela salvação do gênero humano”.

Capítulo 115

1 Certa vez, em um eremitério dos frades acima de Borgo San Sepolcro, vinham às vezes ladrões para pedir pão aos frades, porque naquela província escondiam-s em grandes florestas e saíam às vezes nas estradas e nos caminhos para espoliar as pessoas.

2 Por isso, alguns frades do lugar diziam: “Não é bom dar-lhes esmolas, principalmente porque são ladrões e fazem tantos e tão grandes males às pessoas”.

3 Outros, levando em conta que pediam humildemente e por serem obrigados por grande necessidade, de vez em quando davam-lhes alguma coisa, sempre admoestando-os para se converterem à penitência.

4 Nesse meio tempo, o bem-aventurado Francisco chegou àquele lugar e os frades o interrogaram se deviam dar pão ou não.

5 Disse-lhes o bem-aventurado Francisco: “Se fizerdes como vos direi, confio no Senhor que conquistareis suas almas”.

6 E lhes disse: “Ide, adquiri pão e vinho dos bons, e levai-os para eles na floresta, onde sabeis que eles vivem, clamando e dizendo:

7 Irmãos ladrões, vinde a nós, porque somos irmãos e vos trazemos bom pão e bom vinho.

8 Eles virão imediatamente a vós, e vós estendereis uma toalha no chão, e poreis em cima pão e vinho, para servi-los humilde e alegremente, enquanto estiverem comendo.

9 E depois da refeição, falar-lhes-eis algumas palavras do Senhor e por últimos pedir-lhes-eis por amor do Senhor este primeiro pedido: isto é, que vos prometam que não vão bater em ninguém, nem vão fazer algum mal a algum homem ou outra pessoa, porque, se pedirdes tudo ao mesmo tempo não vos escutarão.

10 E eles, por causa das humildade e da caridade que lhes demonstrastes, logo vos prometerão.

11 E no outro dia levantai-vos e, por causa da boa promessa que vos fizeram, acrescenteis ao pão e ao vinho ovos e queijo, e levai-lhes do mesmo modo e servi-os enquanto comerem.

12 E depois da refeição dizei-lhes: Por que ficais aqui o dia inteiro morrendo de fome, e sofreis tantos males, e por vontade e atos fazeis tantos males, pelos quais perdeis vossas almas se não vos converterdes disso?

13 Pois é melhor servirdes ao Senhor, e Ele vos dará neste século o que é necessário para o corpo, e no fim vai salvar vossas almas.

14 E o Senhor os inspirará, por sua misericórdia, para que se convertam por causa da humildade e caridade que demonstrastes para com eles”.

15 Então os frades se levantaram e fizeram tudo como lhes disse o bem-aventurado Francisco;

16 e eles, pela misericórdia de deus e por sua graça, que desceu sobre eles, ouviram e observaram à letra, ponto por ponto todos os pedidos que os frades lhes fizeram.

17 Até mais: por causa da familiaridade e da caridade que os frades demonstraram para com eles, começaram a carregar lenha para eles nas costas para o eremitério.

18 Tanto que pela misericórdia de Deus, por causa da caridade e de misericórdia que os frades lhes demonstraram, alguns entraram na Religião, outros acolheram a penitência, prometendo nas mãos dos frades que daí em diante não iam cometer aqueles males mas queriam viver do trabalho de suas mãos.

19 Por isso os frades ficaram muito admirados e outros que ouviram e souberam disso, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco, como predissera a conversão deles, que eram homens tão pérfidos e iníquos, e como se converteram ao Senhor tão depressa.

Capítulo 116

1 Houve um frade de honesto e santo comportamento, que era solícito dia e noite pela oração.

2 Observava um silêncio tão contínuo que, às vezes, quando se confessava com um irmão sacerdote, confessava-se com alguns sinais e não com palavras.

3 Pois parecia ser tão devoto e fervoroso no amor de Deus que, às vezes, quando se sentava com os frades, embora não falasse, alegrava-se interior e exteriormente quando ouvia algumas boas palavras, de modo que atraia para a devoção a Deus todos os frades e outros que o viam.

4 Por isso era visto de boa vontade pelos frades e pelos outros como um santo.

5 Já tinha persistido por diversos anos nesse comportamento, quando aconteceu que o bem-aventurado Francisco foi ao lugar onde ele estava e, quando ouviu dos frades como é que ele se comportava, disse aos frades:

6 “Sabei em verdade que isso é uma tentação diabólica e um engano, porque não quer confessar-se”.

7 Nesse meio tempo ali chegou o ministro geral para visitar o bem-aventurado Francisco , e começou a recomendá-lo diante do bem-aventurado Francisco.

8 Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Acredita em mim, irmão, porque esse frade é levado pelo espírito maligno e se engana”.

9 Então o ministro geral respondeu: “A mim parece admirável e como que incrível que possa acontecer o que dizes num homem em que aparecem tão sinais e obras de santidade”.

10 Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Põe-no à prova, dizendo que tem que se confessar pelo menos duas ou uma vez por semana; se não te ouvir, saberás que é verdade o que eu te digo”.

11 Quando conversava, um dia, com aquele irmão, o ministro geral disse-lhe: “Irmão, quero absolutamente que duas, ou pelo menos uma vez por semana te confesses”.

12 Ele pôs um dedo na boca, virando a cabeça, fazendo sinais de que não o faria de nenhum jeito.

13 Mas o ministro, temendo escandalizá-lo, deixou-o.

14 Não muitos dias depois, ele saiu voluntariamente da Religião e voltou para o século, usando roupas seculares.

15 Aconteceu que, certo dia, quando dois dos companheiros do bem-aventurado Francisco andavam pó rum caminho, encontraram-se com ele, que caminhava sozinho, como um paupérrimo peregrino.

16 Com pena dele, disseram: “Ó coitado, onde estão teu santo comportamento e tua honestidade?.

17 Não querias mostrar-te a teus irmãos e falar com eles, e amavas a vida solitária;

18 e agora vais andando por este mundo, como um homem que ignora Deus e seus servos”.

19 Ele começou a falar-lhes, jurando-lhes muitas vezes em sua fé como as pessoas seculares.

20 Disseram-lhe os frades: “Pobre homem, por que com tuas palavras juras pela tua fé como as pessoas seculares, tu que, outrora, na Religião, calavas não só as palavras ociosas mas até as boas?

21 Respondeu-lhes: “Não dá para ser de outro jeito”.

22 Assim deixaram-no. E não muitos dias depois ele morreu.

23 E ficaram muito admirados com isso os frades e outros, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco que lhes predisse a sua queda, no tempo em que era tido como santo pelos frades e pelos outros.

Capítulo 117

1 Certa ocasião, o bem-aventurado Francisco tinha ido a Roma para visitar o senhor Hugolino, bispo de Óstia, que depois foi papa, e ficou alguns dias com ele. Depois, com licença daquele apostólico, visitou o senhor Leão, cardeal da Santa Cruz.

2 Pois esse cardeal era muito bondoso e cortês, gostava de ver o bem-aventurado Francisco e o venerava muito.

3 Rogou-lhe com toda devoção que ficasse com ele por alguns dias, principalmente porque então era inverno, fazia muito frio e quase todos os dias havia muitos ventos e chuvas, como costuma haver nesse tempo.

4 E lhe disse: “Irmão, o tempo não está bom para andar.

5 Quero, se te agrada, que fique comigo até que faça bom tempo para sair. Como eu dou comida todos os dias para alguns pobres em minha casa, receberás de mim o teu sustento como um dos pobres”.

6 O senhor cardeal disse isso porque sabia que o bem-aventurado Francisco, por causa de sua humildade, queria sempre for recebido como um pobrezinho onde se hospedasse, embora fosse de tão grande santidade que era venerado como santo pelo senhor papa e os cardeais e por todos os grandes deste mundo que o conheciam.

7 Disse mais: “Eu vou te dar uma boa casa afastada, onde poderás orar e comer, se quiseres”.

8 Com o cardeal estava Frei Ângelo Tancredi, um dos primeiros doze frades.

9 Ele disse ao bem-aventurado Francisco: “irmão, perto daqui, no muro da cidade, há uma bela torre bem ampla e espaçosa por dentro, que tem nove galerias, em que podes ficar afastado como em um eremitério”.

10 Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Vamos vê-la”.

11 Quando a viu, gostou; voltou ao senhor cardeal e lhe disse: “Senhor, acho que vou ficar alguns dias em vossa casa”.

12 O senhor cardeal ficou muito contente com isso.

13 Por isso Frei Ângelo foi e arrumou-a, para que o bem-aventurado Francisco com seu companheiro pudessem ficar lá de dia e de noite.

14 Pois o bem-aventurado Francisco não queria descer de lá nem de dia nem de noite enquanto ficasse na casa do senhor cardeal.

15 Frei Ângelo propôs ao bem-aventurado Francisco e a seu companheiro que levaria comida de foram todos os dias para a refeição deles, porque nem ele nem outra pessoa devia entrar onde ele estava.

16 Então o bem-aventurado Francisco foi para ficar com o seu companheiro.

17 Mas quando quis dormir lá na primeira noite, vieram demônios que bateram nele fortemente.

18 Ele chamou imediatamente seu companheiro, que ficava longe dele, e disse: “Vem a mim!”.

19 Ele se levantou logo e foi para junto dele.

20 E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Irmão, os demônios me bateram muito; por isso quero que fiques comigo porque tenho medo de ficar aqui sozinho”.

21 E o companheiro ficou com ele durante toda a noite.

22 Pois o bem-aventurado Francisco tremia todo, como um homem que está com febre; e os dois ficaram acordados aquela noite inteira.

23 Nesse meio tempo, o bem-aventurado Francisco conversava com seu companheiro, dizendo: “Por que os demônios me bateram e lhes foi dado pelo Senhor o poder de me fazer mal?”.

24 E começou a dizer: “Os demônios são os esbirros de nosso Senhor. Como o prefeito, quando alguém o ofende, manda o seu esbirro para puni-lo, assim o Senhor corrige e castiga os que ama por seus esbirros, isto é, pelos demônios, que neste ministério são seus ministros.

25 Pois até o religioso perfeito peca muitas vezes ignorantemente.

26 “Por isso, quando não conhece seu pecado, é castigado pelo diabo, para que veja e considere por esse castigo diligentemente, interior e exteriormente, as coisas em que ofendeu, porque quando o Senhor quer manter nesta vida presente alguma pessoa, não deixa nada nela sem vingar.

27 Mas eu, pela misericórdia e graça de Deus, não sei de nada em que tenha ofendido sem que me tivesse corrigido pela confissão e a satisfação.

28 Até mais: por sua misericórdia deu-me este dom de me fazer conhecer na oração tudo em que eu posso agradar ou desagradar.

29 Mas pode ser, como me está parecendo, que o Senhor me castigou por seus esbirros porque, embora o senhor cardeal ,e faça de boa vontade misericórdia e o meu corpo tenha necessidade de receber e eu possa receber confiantemente dele,

30 meus frades, que vão pelo mundo suportando fome e muita tribulação, e outros frades que ficam em casas pobrezinhas e nos eremitérios, quando souberem que eu fico na casa do senhor cardeal, poderão ter uma ocasião de murmurar contra mim, dizendo:

31 Nós aguentamos tantas necessidades, e ele tem suas consolações.

32 Por isso sempre tenho que lhes dar bom exemplo, principalmente porque para isso fui dado a eles.

33 Pois os frades ficam mais edificados quando fico entre eles nos lugares pobrezinhos, do que em outros lugares, e suportam com maior paciência suas tribulações quando ouvem e sabem que eu também as suporto”.

34 E embora o bem-aventurado Francisco fosse sempre enfermo, porque no século foi frágil e débil por natureza e todos os dias até o dia de sua morte, porque ainda estava mais doente,

35 todavia considerava que devia dar sempre bom exemplo aos frades, e que devia tirar-lhes sempre a oportunidade de murmurar contra ele, isto é, que os frades não pudessem dizer:

36 Ele tem tudo que é necessário, e nós não temos.

37 Porque, sadio ou doente, até o dia de sua morte quis padecer tantas necessidades,

38 que todos os frades soubessem, como nós, que estivemos com ele por algum tempo até o dia de sua morte, que, se quisessem lembrar-se, não poderiam evitar as lágrimas, e, quando sofressem algumas enfermidades e tribulações, teriam que suporta-las com mais paciência.

39 E, bem cedo, o bem-aventurado Francisco desceu da torre e foi ter com o senhor cardeal, contando-lhe tudo que tinha acontecido com ele e todas as palavras que conversara com seu companheiro.

40 E também lhe disse: “As pessoas têm muita confiança em mim e acham que sou um santo homem, mas os demônios me expulsaram do cárcere”.

41 Porque queria ficar lá afastado como em um cárcere, sem falar com ninguém a não com seu companheiro.

42 E o senhor cardeal ficou muito contente com ele.

43 Na verdade, como o conhecia e venerava como um santo, ficou contente de sua vontade, depois que não quis ficar lá.

44 E assim o bem-aventurado Francisco, dispensado por ele, voltou para o eremitério de São Francisco de Fonte Colombo, perto de Rieti.

Capítulo 118

1 Certa ocasião, o bem-aventurado Francisco foi ao eremitério de Monte Alverne;

2 e como o lugar era muito afastado, ele gostou tanto que quis fazer aí a quaresma em honra de São Miguel.

3 Pois fora para lá antes da festa da Assunção da gloriosa Virgem Maria, e contou os dias desde a festa de santa Maria até a festa de São Miguel, eram quarenta dias.

4 E disse: “Em honra de Deus e da bem-aventurada Virgem Maria, sua mãe, e do bem-aventurado Miguel, príncipe dos anjos e das almas, quero fazer aqui uma quaresma”.

5 E aconteceu que, quando entrou na cela para lá ficar continuamente, rogou ao Senhor na primeira noite que lhe mostrasse de alguma maneira como poderia saber se era sua vontade que ficasse ali.

6 Pois o bem-aventurado Francisco sempre foi solícito, quando estava em algum lugar continuamente em oração, ou quando saía pelo mundo em pregação, em conhecer a vontade do Senhor, segundo a qual mais pudesse agradá-lo.

7 Porque algumas vezes temia que, com a desculpa de ficar mais afastado para orar, o corpo quisesse descansar, recusando o trabalho de ir pregando pelo mundo, pois para isso Cristo desceu do céu ao mundo.

8 Até mais, os que lhe pareciam amados pelo Senhor, fazia-os rogar ao Senhor que lhes mostrasse sua vontade, se devia sair pelo mundo pregando ou de vez em quando tinha que permanecer em algum lugar remoto para orar.

9 Bem cedo, na aurora, quando estava em oração, vieram pássaros de diversos tipos para cima da cela onde ficava, não todos juntos, mas primeiro vinha um e cantava, demonstrando o seu doce verso, e depois ia embora.

10 Depois vinha outro, cantava e ia embora; e assim fizeram todos.

11 O bem-aventurado Francisco ficou muito admirado com isso e teve a maior consolação, mas começou a meditar sobre o que seria isso.

12 E foi dito pelo Senhor em espírito: “Isso é sinal de que o Senhor vai te fazer o bem nessa cela e vai dar-lhe muitas consolações”.

13 E essa foi a verdade; pois entre muitas outras consolações ocultas e manifestas, que deus lhe fez, foi-lhe mostrada por Deus a visão de um Serafim, da qual teve muita consolação em sua alma, entre ele mesmo e o Senhor durante todo o tempo de sua vida.

14 E aconteceu que, quando seu companheiro levou-lhe a comida, ele contou tudo que lhe tinha acontecido.

15 E embora tivesse muitas consolações naquela cela,, os demônios também lhe causaram muitas tribulações, como contou ao mesmo companheiro.

16 Por isso, uma vez, disse: “Se os frades soubessem quantas tribulações me fazem os demônios, não haveria nenhum deles que não tivesse muita piedade e compaixão de mim”.

17 E por isso, como disse muitas vezes aos seus companheiros, ele não podia prestar as satisfações e mostrar-lhes de vez em quando sua familiaridade, como os frades desejavam.

Capítulo 119

1 Em certa ocasião, o bem-aventurado Francisco permanecia na eremitério de Grécio.

2 E como permanecia em oração de dia e de noite na última cela depois da cela maior, certa noite, no primeiro sono, chamou seu companheiro, que estava deitado perto dela, na cela maior e antiga.

3 O companheiro levantou-se imediatamente e foi ter com ele. Entrou no átrio daquela cela, perto da porta, onde o bem-aventurado Francisco estava deitado, lá dentro.

4 E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Irmão, não pude dormir esta noite, nem ficar direito para a oração; pois minha cabeça e minhas pernas tremem e até parece que comi pão de joio”.

5 O companheiro conversava com ele sobre isso, compadecendo-se.

6 E o bem-aventurado Francisco disse: “Acho que o diabo estava neste travesseiro em que tenho a cabeça”.

7 Pois o senhor João de Grécio, que o santo amava com muito afeto e a quem demonstrou muita familiaridade durante todo o tempo de sua vida, tinha adquirido no outro dia aquele travesseiro, que estava cheio de penas.

8 Pois, desde quando saíra do século, o bem-aventurado Francisco não quis dormir em colchão nem ter à cabeça um travesseiro de penas nem quando estava doente e nem em nenhuma outra ocasião; mas naquela hora os frades o obrigaram contra sua vontade, por causa de sua grande enfermidade dos olhos.

9 Jogou-o para o seu companheiro. Seu companheiro levantou-se, pegou-o com a mão direita e o jogou sobre seu ombro esquerdo e, segurando-o com a mão direita, saiu daquele átrio.

10 E perdeu a fala na mesma hora, e não podia mover-se do lugar nem mexer com os braços e as mãos, nem largar o travesseiro, mas lá ficou parado.

11 Parecia-lhe que era um homem colocado fora de si, que não sente nada nem em si nem nos outros.

12 Tendo ficado assim por uma hora, eis que pela misericórdia divina o bem-aventurado Francisco o chamou.

13 Voltou a si na mesma hora, foi e jogou fora o travesseiro.

14 E voltou a bem-aventurado Francisco, contando tudo que lhe tinha acontecido.

15 O bem-aventurado Francisco disse: “À tarde, quando eu estava rezando Completas, senti quando o diabo entrou na cela”.

16 Mas depois que soube que fora na verdade o diabo que o impedira, não o deixando dormir nem ficar em pé para a oração, começou a dizer a seu companheiro:

17 “O diabo é espero e astuto demais: pois como, pela misericórdia de Deus e por sua graça não pode me fazer mal na alma, quer impedir a necessidade do corpo,

18 para que eu não possa dormir nem ficar em pé para a oração, para impedir a devoção e a alegria do coração, e para que eu reclame da doença”.

19 Pois, apesar de ter tido por muitos anos a maior doença do estômago, do baço e do fígado, e a enfermidade dos olhos, era tão devoto e rezava com tanta reverência, que na hora da oração não queria encostar-se ao muro ou à parede,

20 mas ficava sempre sem capuz na cabeça e algumas vezes de joelhos, principalmente quando se entregava à oração na maior parte do dia e da noite.

21 Até mais: quando ia a pé pelo mundo, sempre parava de andar para rezar suas horas;

22 mas se estivesse cavalgando, porque sempre estava meio doente, desmontava para dizer suas horas.

Capítulo 120

1 Por isso, certa ocasião, quando estava voltando de Roma, quando esteve na casa do senhor Leão por alguns dias, no dia em que saiu de Roma, choveu o dia inteiro.

2 E como estava muito doente, ia a cavalo.

3 Mas para dizer as suas horas, desceu do cavalo, ficando em pé ao lado da estrada, apesar da chuva e de ter ficado todo molhado.

4 E disse: “Se o corpo quer comer em paz e com sossego, a sua comida, que acaba sendo pasto dos vermes, com quanta paz e sossego deveria a alma receber sua comida, que é o próprio Deus!”.

5 E dizia: “O diabo fica exultante quando consegue extinguir ou impedir a devoção e a alegria do coração do servo de Deus, que provém da oração limpa e das outras boas obras.

6 Pois se o diabo pode ter alguma coisa de seu no servo de Deus, se o servo de Deus não for sábio e se, o mais depressa que puder, não o apague ou destrua pela contrição, pela confissão e pela satisfação da obra, em pouco tempo faz de um cabelo uma trave, aumentando cada vez mais”.

7 E disse: “O servo de Deus deve satisfazer a fome, o sono e as outras necessidades de seu corpo com discrição, para que o irmão corpo não possa murmurar, dizendo:

8 “Eu não posso ficar em pé e insistir na oração, nem posso me alegrar em minhas tribulações e fazer outras obras boas, porque não me satisfazes”.

9 Também dizia que se o servo de Deus não satisfaz seu corpo com discrição, de um modo bastante bom e honesto, como puder,

10 e o irmão corpo, na oração, nas vigílias e em outras obras boas da alma quiser ser preguiçoso, negligente e sonolento, deve castigá-lo como um animal mau e preguiçoso, porque quer comer e não produzir nem carregar a carga.

11 Entretanto, se o irmão corpo não pode satisfazer suas necessidades na doença e na saúde por escassez e pobreza, quando pede o que precisa a seu irmão ou prelado, honesta e humildemente, por amor de Deus, e não lhe for dado, suporte pacientemente por amor do Senhor, o Senhor vai dar-lhe o mérito do martírio.

12 E como fez o que podia, isto é, pediu o que necessitava, fica livre de pecado, mesmo que o corpo fique mais doente por causa disso”.

13 Nisso o bem-aventurado Francisco sempre empenhou o maior e o principal esforço, embora seu corpo tenha sido muito afligido desde o princípio de sua conversão até o dia de sua morte, porque sempre foi solícito em ter e conservar, exterior e interiormente a alegria espiritual.

14 Até dizia que, se o servo de deus se esforçar sempre por ter e conservar a alegria interior e exteriormente, o que provém da limpeza do coração, os demônios não podem fazer-lhe nenhum mal, dizendo:

15 “Porque o servo de Deus mantém a alegria na tribulação e na prosperidade, não conseguimos achar nenhuma porta para entrar nele, nem para prejudicá-lo”.

16 Pois certa vez repreendeu um de seus companheiros porque lhe parecia que estava com tristeza e com a cara triste.

17 E lhe disse: “Por que tens tristeza e dor por tuas ofensas?

18 Guarda isso entre ti e deus e para a Ele para que por sua misericórdia te devolva a alegria de sua salvação;

19 e diante de mim e dos outros procura ter sempre alegria, porque não convém que um servo de Deus mostre diante de seu irmão ou de outro um rosto amargo e atribulado.

20 “Eu sei que os demônios me odeiam por causa dos benefícios que Deus me deu por sua misericórdia. Como não pode me fazer mal por mim, tentam e se esforçam por me prejudicar através de meus companheiros.

21 Mas se não conseguem a mim e a meus companheiros, retiram-se com uma grande confusão.

22 Se alguma vez eu me encontrasse tentado e abatido, se vir a alegria de meu companheiro, acho que por causa dessa alegria vou voltar da tentação e do aborrecimento para a alegria interior”.