Capítulo 31
1 Aconteceu em Celano, no tempo do inverno, que São Francisco tinha um pano dobrado na forma de um manto, que um amigo dos frades lhe havia emprestado.
2 E como estava no palácio do bispo de Marsi, foi-lhe ao encontro uma velhinha pedindo esmola.
3 Tirou na mesma hora o pano do pescoço e, embora fosse de outro, deu-o à velhinha pobre, dizendo: “Vai fazer uma túnica para você, porque está precisando bastante”.
4 A velhinha riu espantada, não sei se de medo ou alegria, e pegou o pano de suas mãos.
5 Correu rapidamente e passou-lhe a tesoura, com medo de que a demora trouxesse o perigo de ter que devolver.
6 Mas quando descobriu que o pano cortado não ;ao ia bastar para a túnica, aproveitando a primeira parte da bondade, voltou ao santo mostrando a falta de pano.
7 O santo voltou os olhos para o companheiro, que levava outro tanto de pano nas costas, e disse: “Estás ouvindo, irmão, o que essa pobrezinha está dizendo?
8 Vamos suportar o frio por amor do Senhor. Dá o pano para a pobrezinha completar a túnica”.
9 Ele tinha dado, o companheiro também deu, ficaram os dois despidos para que a velhinha se vestisse.
Capítulo 32
1 Em outra ocasião, quando voltava de Sena, encontrou um pobre e disse ao companheiro: “Temos que devolver a capa ao pobrezinho a quem pertence.
2 Nós a recebemos emprestada até acontecer de encontrar alguém mais pobre”.
3 O companheiro, considerando a necessidade do piedoso pai, resistia teimosamente para que não cuidasse do outro esquecendo de si mesmo.
4 Respondeu o santo: “Não quero sere ladrão. Se não déssemos ao que tem mais necessidade, isso nos seria imputado como furto”.
5 O outro desistiu, e ele deu a capa.
Capítulo 33
1 Coisa semelhante aconteceu perto da Cella de Cortona.
2 O bem-aventurado Francisco levava uma capa nova, que os frades tinha conseguido para ele com muito esforço.
3 Chegou ao lugar um pobre, chorando a mulher que tinha morrido e a família pobrezinha que tinha sobrado.
4 O santo disse-lhe: “Eu te dou esta capa por amor do Filho de Deus, contanto que não a does a ninguém se não te comprar pagando bem”.
5 Os frades acorreram depressa para pegarem a capa e impedirem que fosse doada.
6 Mas o pobre, criando coragem pela cara do santo pai, defendia-a como sua com unhas e dentes.
7 Por fim, os frades recompraram a capa e o pobre foi embora recebendo o preço.
Capítulo 34
1 Certa vez, em Colle, no condado de Perusa, São Francisco encontrou um pobrezinho que já tinha conhecido no século.
2 Disse-lhe: “Irmão, como vais?”.
3 Mas ele se animou e começou a amontoar maldições sobre o seu patrão, que tirara tudo que era dele:
4 “Graças ao meu patrão, que Deus Onipotente o amaldiçoe, só estou passando mal.
5 Com mais pena de sua alma que de seu corpo, pois persistia num ódio mortal, disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Irmão, perdoa o teu patrão por amor de Deus, para libertares tua alma. Pode ser que ele te devolva o que tirou.
6 Se não, além de perder tuas coisas, vais perder também a alma”.
7 E ele disse; “Não posso absolutamente perdoar, se primeiro ele não me devolver o que tirou”.
8 Como tinha uma capa nas costas, o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Olha, eu te dou esta capa, e peço que perdoes teu patrão por amor do Senhor Deus”.
9 Amansado e provocado pelo benefício, ele pegou o presente e perdoou as injúrias.
Capítulo 35
1 Quando ele estava em Sena, aconteceu que lá chegou um homem muito espiritual da ordem dos Pregadores, doutor em sagrada teologia.
2 Tendo visitado o bem-aventurado Francisco, ele e o santo gozaram longamente de uma agradabilíssima conversa sobre as palavras do Senhor.
Capítulo 36
1 Mas o referido mestre interrogou sobre aquela palavra de Ezequiel: Se não avisares o ímpio de sua impiedade, vou pedir de tua mão a alma dele.
2 Pois disse: “Bom pai, eu mesmo conheço muitos que sei que estão em pecado mortal, mas nem sempre lhes falo sobre sua impiedade.
3 Será que vão ser exigidas de minha mão as almas dessas pessoas?
4 Dizendo-lhe o bem-aventurado Francisco que era um idiota e por isso precisava mais ser ensinado por ele que responder sobre a sentença da escritura, o mestre acrescentou humilde:
5 “Irmão, embora eu tenha ouvido de alguns sábios a exposição dessa passagem, vou acolher de boa vontade o que pensas sobre isso”.
6 Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Se a passagem deve ser entendida de maneira universal, eu acho que o servo de Deus deve arder tanto pela vida e santidade que repreenda a todos os ímpios pela luz do exemplo e pela língua do comportamento.
7 Eu diria que, assim, o esplendor de sua vida e o odor da fma vai anunciar a todos as suas iniquidades”.
8 E assim, saindo muito edificado, aquele homem disse aos companheiros do bem-aventurado Francisco: “Meus irmãos, a teologia desse homem, alicerçada na pureza e na contemplação, é uma águia que voa; mas a nossa ciência arrasta o ventre na terra.
Capítulo 37
1 Costumava atacar com este enigma os que não tinham óculos castos:
2 “Um rei piedoso e poderoso mandou sucessivamente dois mensageiros à rainha.
3 O primeiro voltou e se limitou a referir palavra por palavra.
4 Dessa maneira, os olhos do sábio tinha ficado na cabeça, sem cair para lugar nenhum.
5 O outro voltou, e depois de ter contado as poucas palavras, narrou uma longa história sobre a beleza da senhora: Na verdade, senhor, vi uma mulher belíssima. Feliz que quem pode aproveitar.
6 Ele disse: Tu, servo mau, lançaste os olhos impudicos sobre minha esposa? É claro que estavas querendo comprar sutilmente o que admirastes.
7 Mandou chamar de novo o primeiro e disse: “O que achaste da rainha?”.
8 Ele: Ótima, porque ouviu de boa vontade e respondeu sagazmente.
9 E não há nela nenhuma formosura?
10 Senhor meu, isso cabe a ti olhar; eu tinha que referir as palavras.
11 O rei deu a sentença: Tu, casto de olhos, ficareis na câmera com o corpo ainda mais casto. Mas esse outro saia da casa, para não poluir meu leito”.
12 Pois dizia: “Quem não deveria temer olhar a esposa de Cristo?”.
Capítulo 38
1 De vez em quando fazia estas coisas.
2 Fervendo interiormente pela dulcíssima melodia do espírito, soltava exteriormente a voz em francês, e a veia do divino sussurro, que recebia furtivamente nos ouvidos, transbordava em júbilo francês.
3 Algumas vezes, como vi com meus olhos, pegava um pau do chão, colocando-o em cima do braço esquerdo e segurando um arquinho na direita, passando-o pela madeira como se fosse uma viola e, fazendo os gestos adequados, cantava a Deus em francês.
4 Todos esses tripúdios acabavam freqüentemente em lágrimas, e o júbilo se dissolvia na compaixão pela paixão de Cristo.
5 Por isso esse santo vivia suspirando, e com repetidos gemidos, esquecido do que trazia de inferior em suas mãos, elevava-se ao céu.
Capítulo 39
1 Para guardar a virtude da santa humildade, depois de poucos anos, após a sua conversão, em um capítulo, diante de todos os frades da Religião, resignou ao ofício da prelatura dizendo:
2 “Agora estou morto para vós. Mas eis Frei Pedro Cattani, a quem eu e vós todos obedeceremos”.
3 E inclinando-se profundamente diante dele, prometeu-lhe obediência e reverência.
4 Por isso, os frades choravam, e a dor arrancava altos gemidos, quando viam que iam ficar de certa forma órfãos de tão grande pai.
5 Levantando-se, o bem-aventurado Francisco juntou as mãos, voltou os olhos para o céu e disse: “Senhor, eu te recomendo a família que até agora entregaste a mim.
6 E agora, por causa das enfermidades que conheces, dulcíssimo Senhor, não podendo cuidar dela, recomendo-a aos ministros.
7 Que eles tenham que prestar contas diante de ti no dia do juízo, Senhor, se algum dos frades por sua negligência ou mau exemplo , ou também por áspera correção, vier a perecer”.
8 A partir daí permaneceu súdito até a morte, agindo mais humildemente que qualquer um dos outros.
Capítulo 40
1 Em outra ocasião entregou ao seu vigário todos os seus companheiros, dizendo: “Não quero parecer singular por essa prerrogativa, mas que os frades se juntem a mim em cada lugar, como o Senhor lhes inspirar”.
2 E acrescentou: “Já vi um cego que tinha um cachorrinho para guiá-lo pelo caminho”.
3 Essa era, portanto, a sua glória, de forma que, afastada toda espécie de singularidade e jactância, habitasse nele a virtude de Cristo.