Compilação de Assis - Capítulos 41-50

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Capítulo 41

1 Afirmava que os frades menores tinham sido enviados pelo Senhor nos últimos tempos para darem exemplos de luz aos que estavam envolvidos pela escuridão dos pecados.

2 Dizia que se enchia de suavíssimos odores e pela virtude de preciosos unguentos quando ouvia contar os feitos dos santos frades espalhados pelo mundo.

3 Aconteceu que certo frade, uma vez, diante de um senhor nobre da ilha de Chipre, lançou uma palavra de injúria contra um outro frade.

4 O qual, quando viu que o irmão estava um tanto ferido pela ferida da palavra, pegou esterco de asno e, aceso pela vingança de si mesmo, enfiou-o na própria boca para mastigá-lo, dizendo:

5 ”Mastigue esterco a língua que derramou o veneno da ira sobre o meu irmão”.

6 Vendo isso, aquele homem, atônito, foi embora muito edificado, e a partir daí ofereceu a si e suas coisas à vontade dos frades.

7 Isso todos os frades observavam infalivelmente por costume: se algum deles lançasse sobre o outro uma palavra de perturbação, prostrava-se por terra para acariciar com beijos o pé do ofendido, mesmo que não quisesse.

8 O santo exultava com essas coisas quando ouvia que seus filhos davam exemplos de santidade por si mesmos, acumulando de bênçãos digníssimas por todos os títulos esses frades que por palavra ou obra levavam os pecadores ao amor de Cristo.

9 Pelo zelo das almas, de que estava perfeitamente repleto, queria que seus filhos correspondessem a ele por verdadeira semelhança.

Capítulo 42

1 Perto do fim de sua vocação para o Senhor, disse-lhe um frade: “Pai, tu vais passar, e a família que te seguiu vai ser deixada no vale das lágrimas.

2 Indica alguém, se o conheceres na Ordem, em quem teu espírito repouse, a quem se possa impor com segurança a carga do ministério geral”.

3 São Francisco respondeu, vestindo todas as palavras com suspiros: “Filho, não vejo um comandante para um exército tão variado, nenhum pastor para tão amplo rebanho.

4 Mas quero descrever para vós um em que reluza como deva ser o pai desta família”.

5 “Deve ser um homem, disse, de vida gravíssima, de grande discrição, de fama louvável.

6 Um homem que não tenha amizades particulares, para não causar escândalo no todo enquanto gosta mais de uma parte.

7 Um homem que seja amigo do esforço da santa oração, que reserve certas horas para a alma e outras para o rebanho que lhe foi confiado.

8 Pois logo cedinho deve começar com os sacramentos da missa e, numa longa oração, encomendar a si mesmo e o rebanho à proteção divina.

9 Mas depois da oração ponha-se em público para ser depilado por todos, para responder a todos, para prover a todos com mansidão.

10 Um homem que, por acepção de pessoas, não tenha um ângulo sórdido, diante de quem não valha menos o cuidado dos menores e dos simples que o dos sábios e maiores.

11 Um homem a que, se lhe tiver sido dado o dom de se destacar pelo dom da literatura, carregue ainda mais em seus costumes a imagem da piedosa simplicidade, e fomente a virtude.

12 Um homem que execre o dinheiro, principal corrupção da nossa profissão e perfeição, e que, como cabeça de nossa religião, apresentando-se aos outros para ser imitado, jamais abuse de pecúlio algum”.

Capítulo 43

1 “Para ele deveria bastar, dizia, ter para si o hábito e o caderninho, e para os frades um porta-penas e o selo.

2 Não seja amontoador de livros, nem muito entregue à leitura, para não tirar do seu encargo e que privilegia para o estudo.

3 Um homem que console os aflitos, por ser o último refúgio dos atribulados, para que não venha a prevalecer nos enfermos a doença do desespero se faltarem junto dele os remédios para a saúde.

4 Para dobrar à mansidão os atrevidos, prosterne-se, ceda alguma coisa a que tem direito para lucrar a alma para Cristo.

5 Não feche as entranhas da piedade para os egressos da Ordem, como para ovelhas que pereceram, sabendo que as tentações são muito fortes, e podem levar a uma queda tão grande”.

6 “Quisera que ele fosse por todos honrado no lugar de Cristo, e que em tudo lhe provessem com a benevolência de Cristo.

7 Na verdade, convém que não se alegre com as honras, nem se deleite mais com os favores que com as injúrias.

8 Se alguma vez precisar comer mais, assuma-o em lugares públicos e não nos escondidos, para que os outros não fiquem com vergonha de cuidar de seus corpos.

9 Cabe principalmente a ele distinguir as consciências escondidas e fazer brotar a verdade dos veios mais ocultos.

10 Não falhe de maneira alguma na forma viril de justiça, Virilem formam iustitie nullatenus labefactet, pois sinta tão grande cargo mais como um pêso que como uma honra.

11 Entretanto, não nasça a moleza da mansidão supérflua, nem a dissolução da disciplina de uma indulgência relaxada, de modo que, com amor por todos, não deixe de ser terror para os que fazem o mal”.

12 “Quero que eles tenham companheiros dotados de honestidade, que a ele e entre si dessem exemplo de todos os bens;

13 firmes diante das angústias, afáveis como é conveniente, e que recebessem com jovialidade todos os que chegassem..

14 Eis, disse, como deveria ser o ministro geral”.

Capítulo 44

1 Interrogado uma vez por que tinha assim rejeitado todos os frades do seu cuidado, entregando-os a outras mãos, como se não lhes pertencessem, respondeu:

2 “Filho, amo os frades como posso; mas, se seguissem meus vestígios, certamente os amaria mais e não ficaria alheio a eles.

3 Pois há alguns entre os prelados que os arrastam para outras coisas, propondo-lhes exemplos dos antigos e fazendo pouco dos meu avisos.

4 Mas no fim vai ser visto o que estão fazendo”.

5 Pouco depois, quando foi oprimido por doença demasiada, em sua cama dirigiu com veemência de espírito dizendo: “Quem são esses que arrebataram de minhas mãos a minha religião e os meus irmãos?

6 Se eu for ao capítulo geral, vou lhes mostrar qual é minha vontade”.

Capítulo 45

1 O bem-aventurado Francisco não se envergonhava de pedir carne para um frade doente nos lugares públicos das cidades.

2 Mas admoestavam o que se sentiam mal a sofrer com paciência as privações, e a não criarem escândalo se não fizessem tudo que queriam.

3 Por isso fez escrever estas palavras numa das Regras: “Rodo a todos os meus irmãos doentes que, em suas doenças, não se irem ou perturbem contra o Senhor ou contra os frades,

4 Não peçam remédios com muita insistência; nem desejem demasiadamente libertar a carne, que logo vai morrer, e que é inimiga da alma.

5 Dêem graças por tudo, e desejem ser como Deus quer que sejam.

6 Pois Deus ensina com os estímulos dos flagelos e das doenças aqueles que Ele preordenou para a vida eterna, como Ele mesmo disse: repreendo e castigo os que amo (cfr. Heb 12,6; Apoc 3,19)”.

Capítulo 46

1 Zelava com muito ardor pela profissão da Regra comum, e deu uma bênção especial aos que eram zelosos por ela.

2 Pois dizia aos seus que ela era o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do Evangelho, o caminho da perfeição, a chave do paraíso, o pacto da eterna aliança.

3 Queria que todos a tivessem, que todas a soubessem e, em toda parte servisse para conversar com o homem interior como um impulso na indolência e lembrança do juramento feito.

4 Ensinou a tê-la sempre diante dos olhos para recordar como deviam agir e, o que é mais, que deviam morrer com ela.

5 Houve um irmão leigo que não se esqueceu dessa recomendação, e que nós cremos que deve ser venerado entre os mártires, pois conseguiu a palma da vitória gloriosa.

6 Pois quando os sarracenos o levaram para o martírio, segurou a Regra nas mãos levantadas, dobrou humildemente os joelhos e disse ao companheiro:

7 ”Irmão querido, eu me proclamo culpado diante dos olhos da majestade e diante de ti por todas as coisas que fiz contra esta Regra”.

8 À breve confissão seguiu-se a espada, pelo qual terminou a vida terminou em martírio, ficando conhecido mais tarde pelos sinais e prodígios.

9 Tinha entrado tão jovem na ordem que mal podia suportar o jejum regular. No entanto, apesar de quase criança, levava um cilício sobre a carne.

10 Feliz menino, que começou bem para terminar ainda melhor.

Capítulo 47

1 Aborrecia-se muito o bem-aventurado pai quando a ciência era procurada com desprezo da virtude, principalmente quando cada um não persistia na vocação em que tinha sido chamado desde o começo.

2 Dizia: “Os meus irmãos que se deixam arrastar pela curiosidade da ciência vão se encontrar de mãos vazias no dia da tribulação”.

3 Gostaria que se reforçassem mais com virtudes para que, quando encontrarem tempos de tribulação, na angústia tenham o Senhor.

4 Pois virá, disse, uma tribulação em que os livros, não prestando para nada, vão ser jogados nas janelas e nos desvãos”.

5 Não dizia isso porque não gostasse dos estudos das escrituras, mas para afastar a todos do cuidado supérfluo de aprender, pois preferia que fossem bons pela caridade e não sabidos pela curiosidade.

6 Pressentia que não custariam a chegar tempos em que sabia que a ciência seria ocasião de ruína.

7 A um de seus companheiros que estava ocupado com pregações apareceu uma vez depois de sua morte, proibiu e mandou que trilhasse o caminho da simplicidade.

Capítulo 48

1 Dizia que os tíbios, que não se ocupam habitualmente com nenhum trabalho, deviam ser logo vomitados da boca de Deus.

2 Nenhum ocioso podia parecer diante dele sem que o corrigisse com dente mordaz.

3 Assim, ele todo, um exemplo de perfeição, trabalhava e agia com as próprias mãos, não permitindo que se perdesse nada do ótimo dom do tempo.

4 Pois uma vez disse: “Quer o que todos os meus frades trabalhem e estejam ocupados, e que os que não sabem aprendam algum ofício, para sermos menos onerosos para as pessoas e para a língua e o coração não fiquem vagando no ócio”.

5 Mas não confiava o lucro ou pagamento do trabalho a quem o ganhava, mas ao guardião ou à família.

Capítulo 49

1 Encontraram-se em Roma com o bispo de Óstia, que depois foi papa, os preclaros luminares do mundo, São Francisco e São Domingos.

2 Depois de terem conversado coisas muito agradáveis a respeito de Deus, disse-lhes o bispo: -- “Na Igreja primitiva os pastores eram homens pobres, fervorosos de caridade e não de cobiça.

3 Por que não fazemos de seus frades bispos e prelados, para liderarem os outros pela doutrina e pelo exemplo?

4 Surgiu, então, entre os dois santos, uma porfia, não para passar na frente mas para estimular e até obrigar a responder.

5 Na verdade, cada um queria ser o primeiro na devoção ao outro.

6 Finalmente a humildade venceu Francisco para que não se pusesse à frente, e também venceu Domingos, para que, respondendo primeiro, obedecesse humildemente.

7 Domingos respondeu ao bispo: -- “Senhor, meus frades já foram promovidos a um bom grau, se o souberem reconhecer, e, se depender de mim, não permitirei que assumam outro tipo de dignidade”.

8 Depois que ele fez esse breve discurso, o bem-aventurado Francisco se inclinou diante do bispo e disse: -- “Senhor, meus frades são chamados de menores para que não presumam ser maiores”.

9 Sua vocação ensina-os a ficar no chão e a seguir os vestígios da humildade de Cristo, de modo que, afinal, na recompensa dos santos, sejam mais exaltados do que os outros.

10 Se queres que produzam fruto na Igreja, mantém-nos e conserva-os no estado de sua vocação, e faze-os voltar ao chão mesmo que não queiram.

11 E não permitas de maneira alguma que subam a uma prelatura”.

12 Essa foi a resposta dos bem-aventurados.

13 No fim das respostas, muito edificado com as palavras dos dois, o senhor de Óstia deu muitas graças a Deus.

14 Quando saíram de lá, o bem-aventurado Domingos pediu a São Francisco que se dignasse dar-lhe a corda com que se cingia.

15 O bem-aventurado Francisco custou para fazer isso, com tanta humildade quanta era a caridade com que o outro lhe pedia.

16 Mas a devoção do feliz pedinte venceu, e ele a cingiu com muita devoção sob a túnica inferior.

17 No fim deram-se as mãos e fizeram mútuas recomendações com muito carinho.

18 Disse um santo ao outro: -- “Gostaria, Frei Francisco, que a tua e a minha religião fossem uma só e vivessem de forma semelhante na Igreja”.

19 Quando foram embora para casa, o bem-aventurado Domingos disse muitos que estavam presentes: -- “Na verdade vos digo que os outros religiosos deveriam seguir o santo varão Francisco, tanta é a perfeição de sua santidade”.

Capítulo 50

1 Em certa ocasião, no começo, isto é quando o bem-aventurado Francisco começou a ter irmãos, permanecia com eles em Rivotorto.

2 Uma noite, lá pela metade, quando todos estavam descansando em suas enxergas, um dos frades exclamou dizendo: “Estou morrendo, estou morrendo!”.

3 Assustados e atemorizados, todos ao frades acordaram.

4 Levantando-se, o bem-aventurado Francisco disse: “Levantai-vos, irmãos, e acendei a luz”.

5 Quando se acendeu a luz, o bem-aventurado Francisco disse: -- “Quem foi que disse: “Estou morrendo”.

6 Aquele frade respondeu: “Sou eu”.

7 E o bem-aventurado Francisco lhe disse: -- “O que tens, irmão? Como estás morrendo?”.

8 E ele: “Estou morrendo de fome”.

9 O bem-aventurado Francisco, homem cheio de caridade e discrição, para que aquele frade não ficasse com vergonha de comer sozinho, mandou logo pôr a mesa e todos comeram juntos com ele.

10 Pois ele e outros tinham sido convertidos havia pouco tempo para o Senhor, e afligiam demais os seus corpos.

11 Depois da refeição, o bem-aventurado Francisco disse aos outros frades: “Irmãos meus, assim vos digo que cada um leve em conta sua natureza;

12 porque, ainda que algum de vós possa sustentar-se com menos comida que outro, não quero que o que necessita de mais comida tente imitá-lo nisso; mas considerando sua natureza, dê a seu corpo o que lhe é necessário.

13 Pois assim como temos que evitar o exagero no comer, que faz mal ao corpo e à alma, , assim temos que evitar a abstinência demasiada, tanto mais que o Senhor quer a misericórdia e não o sacrifício”.

14 E disse: “Queridos irmãos, isso que eu fiz, isto é que por caridade com nosso irmãos comemos com ele, para que não ficasse com vergonha de comer sozinho, fui obrigado a fazê-lo pela grande necessidade e a caridade.

15 Mas eu vos digo que, nas outras coisas, não quero fazer assim, porque não seria religioso nem honesto.

16 Mas quero e vos ordeno que cada um, segundo nossa pobreza satisfaça ao seu corpo, como for necessário”.

17 Pois os primeiros frades, e outros que vieram depois deles durante muito tempo, afligiam seus corpos não só com uma excessiva abstinência na comida e bebida, mas também em vigílias, frio e trabalho de suas mãos.

18 Para isso levavam sobre a carne cinturões de ferro e as cotas de malha que podiam ter e fortíssimos cilícios, como também o mais que podiam ter.

19 Por isso o santo pai, achando que os frades podiam ficar doentes por causa disso, e alguns já tinham adoecido em pouco tempo, proibiu em um capítulo que algum frade usasse por baixo, junto da carne, a não ser a túnica.

20 Nós, porém, que estivemos com ele, damos testemunho de que, embora fosse discreto com os frades desde o tempo em que começou a receber irmãos e também durante todo o tempo de sua vida, procurou entretanto que se guardassem sempre, que em questão de comidas e de coisas, a pobreza e a honestidade requeridas por nossa Religião e que eram usadas pelos frades antigos.

21 Mas ele mesmo, ainda antes de ter irmãos, desde o começo de sua conversão e durante todo o tempo de sua vida, foi austero com o seu corpo, apesar de ter sido um homem frágil em sua juventude e de natureza fraca, e no século não podia viver a não ser delicadamente.

22 Certa ocasião, achando que os frades já tinham exagerado o modo da pobreza e da honestidade na comida e nas coisas, numa pregação que fez, disse a todos os frades, dirigindo-se pessoalmente a alguns deles:

23 “Será que os frades não acreditam que meu corpo precisa de comidas especiais?

24 Mas como convém que eu seja a forma e o exemplo de todos os frades, quero usar e ficar contente com comidas e coisas pobrezinhas, não delicadas”.