O livro que estamos chamando de Compilação de Assis também é conhecido como “Legenda Perusina” ou “Legenda de Perusa”.
1. O livro
Entre as fontes biográficas, é a de mais recente descoberta. A primeira publicação foi feita em 1922 por Fernando Delorme, a partir de um códice descoberto na biblioteca municipal de Perusa, onde tinha o número 1046.
Na realidade, já tinha sido inventariado em 1381 por João de Iolo, como o códice VIII da livraria pública da Biblioteca do Sacro Convento, em Assis. Daí passou para o convento de Monterípido, em Perusa e, a partir de 1860, quando os conventos foram supressos, foi parar na biblioteca municipal de Perusa. Os peritos acham que ele foi copiado em Assis entre 23/3/1310 e 31/5/1312.
Inicialmente, devia constar de 21 fascículos divididos em quatro seções. Como faltam cinco fascículos, várias seções estão mutiladas. Mas o códice contém diversas bulas de interesse dos franciscanos, além de uma cópia da Legenda Maior e do nosso documento, identificado por Delorme como Legenda Antiqua.
Sabe-se que o escrito é uma cópia de uma compilação feita anteriormente, provavelmente por um frade que morava em Assis. Como tinha acesso à biblioteca, onde estariam guardados muitos cadernos e rolos de pergaminhos (talvez grande parte do material enviado a partir de 1244 para Crescêncio de Iesi e já usado por Celano), ele pode ter querido guardar para uso próprio alguns textos que lhe pareceram interessantes.
Para dar uma idéia geral do conteúdo, apresentamos o quadro a seguir. Não é um texto que se possa pôr muito em ordem. Entre colchetes [...] colocamos os números correspondentes na edição conhecida das “Fonti Francescane” e na antiga edição da Editora Vozes como “Legenda Perusina”. As "inserções" foram postas depois; em geral, vieram de 2Cel.
Visão Geral
I. A Obediência de Francisco (1-8)[...98-101]
II. Humildade e Pobreza (9) [102]
A Humildade (10-11) [103-106]
A Pobreza (12-16) [107-112]
De 16 a 22 estão os Ditos de Francisco, escritos por Frei Leão. Só o n. 16 se refere à Pobreza, mas deve ter trazido todos os outros consigo. (107-112)
A pobreza contínua: (23-40) [...]
III. Nossa missão: ser modelo (41-64) [...1-22]
O Ministro Geral (42-43) [...]
Francisco, como modelo (44-55) [...1-7]
A Porciúncula - modelo (56-64) [8-22]
57-59 inserção sobre edifícios pobres [13-17]
IV. História de admiração (65-76) [23-36]
V. Historias sobre as doenças de São Francisco (77-94) [37-57]
86-88: inserção: Francisco e a Criação [46-51]
90-93: inserção sobre a generosidade [53-60]
VI. Francisco pede esmolas (96-98) [59-63]
um acréscimo sobre a alegria (99-100) [64-65]
VII. O que Francisco queria para a Ordem: que fossem pobres (101-117) [66-92]
De 101 a 106 está a famosa Intenção da Regra (não ter nada) atribuída a Fr. Leão [66-77]
Francisco reafirma a Pobreza evangélica (102) [69]
Francisco queria guia-los pelo exemplo (106-117) [77-92]
inserção - devoção à Eucaristia (108) [79-82]
inserção: histórias admiráveis (115-117)[90-92]
VIII. Histórias do demônio (118-120) [93-97]
Delorme fez uma primeira edição em 1922 com o nome de Legenda Antiga de São Francisco, mas selecionou só o que era inédito, deixando de lado trechos copiados de Celano. Em 1926 fez uma segunda edição, mudando completamente a ordem para tentar recuperar o livro como ele achava que tinha sido antigamente, quando saiu da mão dos companheiros de São Francisco. Mas afirmou que tinha havido um redator único: Frei Leão.
Nesse caminho, Jacques Cambell publicou em 1967 um livro chamado "As flores dos três companheiros", e Rosalind Brooke apresentou outro, em 1970, com o nome de "Os escritos de Leão, Rufino e Ângelo, companheiros de São Francisco".
Foram trabalhos bem feitos, mas que não convenceram. Em 1975, Marino Bigaroni prestou a enorme colaboração de publicar o texto na ordem e exatamente como está no Códice de Perusa. Mas disse que era preferível chamá-lo de "Compilação de Assis", nome que também foi aceito por outros autores.
2. Os Autores
A “Compilação de Assis” não deveria ser chamada de Legenda de Perusa. Na verdade, não é uma "legenda", porque não apresenta uma biografia do começo ao fim mas uma série de episódios soltos. Justamente por isso, muitos quiseram ver nela o verdadeiro texto dos três companheiros, que deveria estar em seguida à famosa Carta de Grécio.
Podemos aceitar essa opinião contanto que fique claro que não chegou até nós o texto como foi escrito por eles. Muitos trechos devem ter sido acrescentados e muitos outros omitidos.
Como dissemos, o texto da Compilação de Assis que conhecemos é de um manuscrito de 1311. Um pouco mais antigo do que o Espelho da Perfeição, cujo texto conhecido é de 1318, os dois devem ser considerados compilações feitas no início do sec. XIV, quando fervia a questão dos espirituais e se sentiu a necessidade de apresentar, para modelo ou "espelho" dos frades, uma "Legenda antiga", isto é, com material anterior à "Legenda nova" de São Boaventura.
Mas uma compilação usa, evidentemente, material mais antigo. Deve ter recolhido material que se pode atribuir aos "três companheiros". Aí podem ter entrado o "Florilégio" escrito em 1246, alguns capítulos da Vida Segunda de Celano e certamente outros textos dispersos, mesmo atribuíveis a Frei Leão, como os "Ditos de São Francisco" ( Verba Sancti Francisci) e a "Intenção da Regra".
Mas há fortes indicações de que um mesmo autor escreveu a maior parte do livro. O estilo é marcado pelo mesmo linguajar em todo o conteúdo não apresentado como "inserção" no nosso esquema. Repete-se oito vezes a laetitia utriusque hominis, 18 vezes nos qui cum eo fuimus, 21 vezesmultotiens, 46 vezes maxime quia, todas expressões que não se encontram com facilidade em outros livros. Mas o escritor fala sempre no plural.
Frei Leão entrou na Ordem em 1210 e foi ordenado por esse tempo. Foi confessor, secretário e companheiro de Francisco, que admirava sua "simplicidade e pureza" (EP 85). Recebeu os três autógrafos do santo que ainda temos.
Frei Rufino, primo de Santa Clara, era considerado um santo por Francisco, porque estava em contínua oração. Diz-se que era baixinho e delicado.
Frei Ângelo era estimado por Francisco por sua cortesia de cavaleiro. Estava junto do santo quando ele pregou aos pássaros, quando visitou o cardeal Brancaleone (1223), no Alverne (1224), em Rieti (1225) e em Assis (1226).
3. Os Ditos de São Francisco
O texto incluído na LP do número 16 ao 22 é atribuído pessoalmente a Frei Leão e já foi editado à parte, em 1901, por Leonardo Lemmens, com o título "Verba Sancti Francisci", a partir do manuscrito 1/73 encontrado na biblioteca do Colégio Irlandês Santo Isidoro, de Roma. Também foi estudado por Edith Pásztor em 1974, 1980 e 1988. Calcula-se que seja posterior a 1246, porque Celano o ignorou. Mas sabe-se que deve ser anterior a 1260 porque São Boaventura demonstra conhece-lo. Frei Leão pode ter escrito mais tarde um texto à parte, porque viveu até 1276.
Mas são textos polêmicos, que refletem a luta entre os espirituais e a comunidade. É no n. 113 (88) que está a famosa história em que o próprio Jesus teria clamado dos céus diante dos ministros que a Regra tinha que ser obedecida "à letra, à letra e sem glosa, sem glosa, sem glosa". Deve ser sinal do uso pelos espirituais o fato de o texto citar duas vezes o nome de Frei Leão.
4. A Intenção da Regra
A famosa "Intentio Regulae", que também foi publicada em 1901 por Lemmens e estudada por Edith Pásztor, está nos números 101-106. Também é polêmica e muito usada na luta dos espirituais. Note-se que os dois textos podem ter sido tirados da coleção de 1246 e depois aumentados, como também podem ter sido escritos mais tarde por Frei Leão e só incluídos na LP em 1311.
5. História do Texto
Os chefes dos espirituais – Pedro João Olivi, Hubertino de Casale e Ângelo Clareno – alegam muitas vezes os rotuli (rolos) de Frei Leão, e Hubertino chega a citar “um livro conservado no armário dos frades de Assis” com textos escritos pela própria mão de Frei Leão. Entre outros estão a Intentio Regulae, citada por Hubertino, e o Verba Sancti Francisci, citado por Clareno.
Um estudo mostrou que há 53 capítulos que estão presentes tanto no Espelho de Perfeição quanto na 2Cel. Eles devem ter uma fonte comum e a CA (ou LP) pode ser uma cópia dessa fonte. Nessa época, deviam correr diversas cópias um tanto variadas que, depois, acabaram confluindo nas mais famosas. É provável que fizessem cópias um pouco diferentes de acordo com as regiões e os grupos.
O material que forma o texto da CA pode ser dividido em cinco seções. As duas primeiras são cópia direta da Vida II de Celano. As três últimas devem ser uma cópia do material que serviu para Celano escrever a sua Vida II. Uma outra cópia deve ter servido para escrever o Espelho da Perfeição (edição maior, ou de Sabatier). Mas também é possível demonstrar que a Legenda de Perusa, o Espelho da Perfeição Menor (edição de Lemmens) e o manuscrito de Little são três famílias provenientes do mesmo texto original.
Entre 1248 e 1311, outro recopilador reestruturou o material dos três companheiros para destacar o papel de Francisco como modelo de obediência, humildade e pobreza. Pode ter sido influenciado nisso pela obra de São Boaventura.
De qualquer jeito, é fundamental ter por certo que a LP não reuniu todos os rolos, fichas etc. de Frei Leão que se conservavam na passagem do sec. XIII para o XIV, segundo vários testemunhos, ou na biblioteca do S. Convento, ou em São Damião, ou com Hubertino de Casale, ou alhures. Isso faz pensar que houve uma tradição manuscrita anterior, composta de pequenas “síloges”. Dela podem depender tanto a CA quanto o EP, quanto o que foi testemunhado pelos espirituais.
É certo que a figura de Francisco apresentada na CA deve ter influenciado bastante os espirituais, mas eles depois passaram para frente uma imagem mais exacerbada por suas convicções joaquimistas, com aspectos mais proféticos e carismáticos.
Talvez os próprios autores não tenham tido consciência de que apresentaram o santo mas também o peso do movimento que se tornou tão grande que ele não conseguiu controlar, embora tenha rejeitado até o fim o uso da força. Isso não aparece em testemunhos individuais e em apresentações esquemáticas mas no contexto geral. Por isso digo que talvez não tiveram consciência clara.
6. O conteúdo da Compilação de Assis
A Compilação de Assis distingue-se das biografias anteriores por não contar nada da juventude de São Francisco. Só fala dele como membro da Ordem.
É uma preciosidade por dar os testemunhos dos primeiros companheiros, que estavam vivendo uma vida conventual e tinham saudades dos tempos heróicos. Só ela mostra o sofrimento de Francisco diante da atitude dos “prudentes” e dos problemas que surgiam com a evolução da fraternidade. O n. 63 (21) chega a dizer que ele ficou gravemente perturbado e fugia do convívio dos irmãos por não poder apresentar seu sorriso habitual. Celano parece ter suavizado esses problemas, apesar de ter escrito: “Quem são esses que me arrancaram das mãos a Ordem que é minha e de meus frades? Se for ao capítulo geral, mostrar-lhes-ei qual é a minha vontade” ( 2Cel 188).
Mas São Francisco aparece como modelo da vida franciscana. Na década de 1240, a Ordem estava se estabelecendo como uma força universitária, com estudantes e catedráticos em Paris, Bolonha, Cambridge e Oxford. Mas, ao mesmo tempo, os eremitérios tentavam continuar a vida contemplativa dos primeiros tempos e, por isso, crescia a distinção entre os orantes e os pregadores ou estudantes.
A maior parte dos relatos dos três companheiros situa-se nos eremitérios ou se apoia neles. A Porciúncula, que com Francisco é modelo de pobreza e de vida, aparece trinta e uma vezes. Mas também aparecem eremitérios como Fonte Colombo, Greccio, Poggio Bustone, Rivo Torto, Alverne, Le Celle de Cortona, Rocca di Brizio e Santo Eleutério. Para os companheiros, está bem claro: os santos feitos de Francisco foram fruto da contemplação. Estudos e pregações são importantes, mas a fonte da salvação está nos eremitérios.
Os frades mais lembrados são Bernardo (17 vezes), Pedro Catani (12) e Pacífico (9). Ângelo só aparece 4 vezes, Leão duas e Rufino nenhuma.
É bom observar que, mesmo tendo fontes comuns, a Legenda dos Três Companheiros, o Espelho de Perfeição e a Compilação de Assis sempre têm uma maneira própria de apresentar São Francisco.
Um dos pontos específicos da Compilação de Assis é sua maneira de apresentar Francisco em sua relação com a Igreja. Há doze parágrafos que falam disso, especialmente do relacionamento com a hierarquia. O 19, sem correspondente na edição de Delorme, porque vem de 2Cel 146, fala da humildade e reverência que os frades devem ter para com o clero.
Mas há textos que mostram que ele nem sempre concordava com tudo. No n. 18 (114), por exemplo, resiste ao cardeal Hugolino e aos que queriam que adotasse uma das regras monacais.
Também não concordou com a idéia do cardeal que queria elevar alguns frades ao episcopado, como vemos no n. 49 (sem correspondente em Delorme). Situações semelhantes vemos nos números 54 (6), 84 (44), 94 (57) e 108 (80).
Parece que o relacionamento que tinha sido tão exaltado no Anônimo Perusino e na Legenda dos Três Companheiros já perdera muito de sua força, pelo menos na redação final (de 1311) da Compilação de Assis.
Também são saborosas as informações dadas pelo nosso livro sobre o Cântico do Irmão Sol e a exortação Ouvi, Pobrezinhas, nos números 83-85 (43-45), além de tudo que fala sobre o amor e respeito de São Francisco por todas as criaturas, nos números 86-88 (46-49).
7. Conclusões
A Compilação de Assis, como a Legenda dos Três Companheiros, o Anônimo Perusino e o Espelho de Perfeição são conhecidos em suas versões do início do século XIV embora contenham material que vem dos contemporâneos de São Francisco, podendo ser anteriores pelo menos à Vida II de Celano. Testemunham a reação que houve dentro da Ordem, pelo menos por parte dos mais apegados à tradição ou ao espírito de Francisco, diante da Legenda Maior. É claro que o tempo em que as cópias foram feitas (e provavelmente manipuladas) lembra a luta dos espirituais. Mas não pode ser só isso: é uma demonstração de que o movimento franciscano sempre sobreviveu porque sempre houve irmãos e irmãs que lutaram para ser fiéis ao espírito genuíno de Francisco de Assis.
Apesar de ser marcada por um sentimento de que a Ordem está perdendo devagarinho seu clima de rigorosa ascese e o fervor apostólico do franciscanismo primitivo, podemos concluir, com o historiador Estanislau de Campagnola, que a Compilação de Assis "é um documento de segura e extraordinária beleza, de indiscutido e indiscutível valor biográfico, justamente porque está repleto de uma comunicação simples e persuasiva que faz dele, como o Espelho de Perfeição, um dos textos mais imediatos e significativos a respeito dos gestos, da maneira de agir, da vontade de São Francisco. Suas narrativas são marcadas por um espírito devoto e constituem um agradável entretenimento, ricas principalmente de fatos edificantes e maravilhosos - humanamente, não sobrenaturalmente milagrosos - marcados por uma presença e por uma participação humana dos companheiros, concreta e intensamente vivida".
A Compilação de Assis consta de 120 parágrafos: