Actus beati Francisci et sociorum eius - Capítulo 29

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Como São Francisco converteu os ladrões, que entraram na Ordem e nela viveram muito santamente.

1 Querendo levar todos para a salvação, nosso bem-aventurado pai Francisco percorria o mundo pelas diversas províncias. Onde quer que fosse, como era conduzido pelo Espírito divino, aumentava a família do Senhor. 2 Por isso, infundindo a graça de Deus como uma vaso escolhido pelo Senhor, foi à Eslavônia, à Marca de Treviso, à Marca de Ancona, à Apúlia, ao país dos sarracenos e a muitas outras províncias, multiplicando em toda parte os servos de nosso Senhor Jesus Cristo.

3 Quando passou por Monte Casale, uma aldeia que fica no distrito de Borgo San Sepolcro, recebeu aí um jovem nobre desse burgo. 4 Chegando a São Francisco, ele lhe disse: “Irmão, eu gostaria de me tornar um de seus irmãos, com a maior boa vontade”. São Francisco respondeu: “Filho, tu és jovem, delicado e nobre, pode ser que não consigas suportar nossa pobreza e aspereza”.

5 O moço disse: “Pai, vós não sois homens como eu? Se vós, que sois semelhantes a mim, suportais, eu também poderei suportar, com a ajuda de Deus”.

6 Essa resposta agradou muito a São Francisco, que o recebeu e abraçou imediatamente, dando-lhe o nome de Frei Ângelo. Ele procedeu tão bem que, pouco depois, São Francisco colocou-o como guardião do lugar de Monte Casale.

7 Naquele tempo, havia três ladrões famosos, que perpetravam muitos males. Um dia eles foram ao lugar e rogaram ao guardião Frei Ângelo que arranjasse comida para eles. 8 Mas o guardião repreendeu-os rigidamente, dizendo: “Vós, ladrões e cruéis homicidas, não apenas não tendes vergonha de roubar o trabalho dos outros mas ainda, por cima, tendes a pretensão de devorar descaradamente as esmolas que foram dadas aos servos de Deus! 9 Não sois dignos de que a terra os sustente, porque não respeitais homem nenhum e desprezais a Deus, que vos criou. Ide cuidar de vossa vida e nunca mais venhais aqui!”.

10 Eles ficaram muitos perturbados e foram embora com a maior indignação. No mesmo dia, São Francisco voltou para o lugar, trazendo, das esmolas que pedira com seu companheiro, uma sacola de pão e um barrilete de vinho.

11 Quando Frei Ângelo contou como os tinha expulsado, São Francisco repreendeu-o com dureza, dizendo que tinha agido sem piedade, porque os pecadores convertem-se melhor com a doçura da piedade do que com uma correção cruel. 12 Porque Cristo nosso mestre, a quem prometemos observar o evangelho,disse: Não são os que estão com saúde que precisam de médico mas os que estão passando mal e Não vim chamar os justos mas os pecadores (cfr. Mt 9,12.13); e por isso comia freqüentemente com os pecadores (cfr. Mt 9,11).

13 Mas, porque agistes contra a caridade e contra o exemplo de Cristo bendito, eu te mando por obediência que pegues imediatamente este saco de pão e a vasilha de vinho que eu ganhei 14 e procures solicitamente por montes e vales os ladrões, até os encontrares. E lhes ofereças de minha parte todos estes pães e o vinho, ajoelhando-se diante deles e confessando humildemente a culpa de tua crueldade. 15 E pede-lhes, da minha parte, que não façam mais males mas temam a Deus e não ofendam o próximo. Se eles fizerem isso, eu prometo que haverei de prove-los continuamente das coisas necessárias para o seu corpo. Depois de lhes dizer humildemente essas coisas, voltarás”.

16 Nesse meio tempo, São Francisco ficou rezando por eles ao Senhor, para que abrandasse seus corações para a penitência. 17 Por isso, aconteceu que, quando eles comeram aquelas esmolas mandadas por São Francisco, começaram a conversar, dizendo:

18 “Ai de nós, pobres infelizes, que tormento duro e infernal nos espera! Nós vivemos não só depredando os outros e ferindo as pessoas, e até matando-as! E não nos deixamos mover por nenhum temor de Deus ou compunção da consciência por crimes tão horrorosos. 19 E esse frade santo vem a nós. Por causa de algumas palavras muito justas, pronunciadas por causa da nossa maldade, acusa-se humildemente diante de nós e ainda trouxe, com o pão e o vinho, o benefício da caridade, falando de tão liberal promessa do santo pai e cuidar das nossas necessidades. 20 Na verdade, eles são os santos de Deus, que merecem a pátria celeste. Mas nós somos filhos da perdição eterna, pois aumentamos todos os dias as chamas vingadoras por nossas obras nefandas!. 21 Não sei se poderemos encontrar a misericórdia de Deus pelos crimes praticados e as infâmias cometidas!” Quando um deles disse isso ou algo parecido, os outros dois disseram: “Então, o que temos que fazer?”.

22 Ele disse: “Vamos ter com São Francisco. Se ele nos garantir que podemos obter a misericórdia do Senhor por nossos grandes pecados, vamos fazer tudo que ele mandar, para podermos libertar nossas almas do abismo do inferno”. 23 Os três concordaram com esse plano e foram correndo dizer a São Francisco: “Pai, nós não confiamos que vamos ter a misericórdia de Deus por nossos muitos e maus crimes; 24 mas, se tu esperas que Deus nos receba em sua misericórdia, estamos preparados para fazer penitência contigo”.

25 São Francisco recebeu-os bondosa e caridosamente, exortando-os com muitos exemplos, e lhes garantiu que teriam a misericórdia de Deus, prometendo até que ele mesmo ia conseguir a misericórdia do Senhor Jesus Cristo. 26 Também lhes explicou que toda a grandeza sem medidas da divina misericórdia é maior do que todos os nossos pecados, mesmo que eles fossem infinitos e que, como atestam o evangelho e São Paulo apóstolos, Cristo bendito veio a este mundo para remir os pecadores.

27 Por causa dessas exortações salutares, os três ladrões renunciaram ao mundo e, recebidos pelo santo pai, uniram-se a ele tanto pelo hábito como pelo ânimo. Dois deles viveram pouco e, depois da salutar mudança, migraram deste século, chamados pelo Senhor. 28 O terceiro, que sobreviveu, considerando tantos e tão grandes pecados que fizera, entregou-se a tal penitência que, durante quinze anos, com exceção das quaresmas comuns, que fazia como os outros, continuamente tomava só pão e água três vezes por semana. 29 Contente só com uma túnica pequena, andava sempre descalço, e nunca dormia depois de matinas. Dentro desses quinze anos, São Francisco passou deste mundo para o Pai,

30 Quando esse frade já tinha mantido o rigor dessa penitência por muitos anos seguidos, eis que, uma noite, depois de matinas, teve uma tentação tão forte de sonolência que não conseguia resistir de modo algum ao sono, nem vigiar como estava acostumado. 31 Como não conseguia resistir nem podia orar, sucumbiu à tentação e foi para a cama dormir. Mas, logo que pôs a cabeça na cama, foi conduzido no espírito para um monte muito alto (cfr. Mt 4,8), onde havia um despenhadeiro profundíssimo, onde havia, aqui e ali, rochas talhadas e muitos escolhos que sobressaíam de maneira desigual.

32 Quem o estava levando empurrou o frade lá do alto do despenhadeiro. Precipitado-se por entre escolhos e colisões de rocha em rocha, quando chegou ao fundo do abismo parecia estar com todos os membros despedaçados e com os ossos quebrados. 33 Prostrado e contundido, foi chamado por seu guia para levantar-se, porque ainda tinha que fazer um longo caminho. O frade respondeu: “Pareces uma pessoa dura e indiscreta, porque, vendo que estou arrebentado até a morte, dizes para eu me levantar!”.

34 O outro veio, tocou-o e o curou perfeitamente, na hora, de todas as colisões. Mostrou-lhe, então uma grande planície cheia de pedras agudas, espinhos, abrolhos, com buracos de lama e água. Ele teria que passar descalço por ali, chegando ao fim da planície, onde havia uma fornalha ardente que se via de longe, na qual ele devia entrar. 35 Depois que atravessou com muita angústia a planície e chegou à fornalha, disse-lhe o anjo: “Entra nessa fornalha porque é preciso fazer isso”.

36 Ele respondeu: “Ai, que duro condutor tu és. Estás vendo que eu passei por essa angustiosa planície tão atribulado pela pena, precisando do maior descanso, e dizes: “Entra na fornalha” ! 37 Quando olhou em torno da fornalha viu que estava cercada de todos os lados por demônios armados de forcados que, quando viram que ele estava demorando para entrar na fornalha, empurraram-no com os forcados. 38 Entrando no próprio fogo, lá encontrou um seu compadre, que estava ardendo inteiro, e exclamou: “Ó infeliz compadre, como vieste para cá?”. Ele disse: “Anda mais um pouquinho neste fogo que vais encontrar minha esposa, tua comadre, que vai te contar a causa da minha condenação”. Quando andou um pouco pelo fogo, a comadre apareceu toda em fogo, sentada e entalada numa medida de trigo. Ele disse: “Ó comadre infeliz e miserável, como caíste neste suplício?”. Ela respondeu: “Porque no tempo da grande fome, que fora predita pelo bem-aventurado Francisco, eu e meu marido vendíamos trigo e falsificamos a medida. É por isso que estou queimando apertada nesta medida”. Dito isso, o anjo jogou-o para fora do fogo, dizendo: Prepara-te para o caminho, porque ainda tens que passar por uma coisa horrível”.

39 Dizia-lhe: “Ó guia duríssimo, que não te deixas mover por nenhuma compaixão. Vês que estou quase todo queimado e me dizes: Vem para mais um perigo horrível!”.

40 O anjo tocou-o e o curou perfeitamente. E o levou para uma ponte que não podia ser atravessada sem um perigo enorme, porque era estreita demais e excessivamente lisa. 41 Embaixo da ponte corria um rio terrível, cheio de serpentes, dragões, escorpiões e corujas, com um fedor horrendo. O anjo disse: “Atravessa esta ponte porque tens que passá-la de qualquer jeito”.

42 Ele respondeu: “Como vou poder passar sem cair nesse rio tão perigoso?”. Disse o anjo: “Vem atrás de mim, pondo teu pé aonde vires que eu ponho o meu, e vais atravessar bem”. 43 Ele foi andando atrás do anjo, pondo o pé onde o outro o punha, chegando salvo até o meio da ponte. 44 Mas, quando estavam no meio da ponte, o anjo foi embora voando e subiu lá no alto para uma morada bem admirável, colocada nas alturas. Ele notou bem como o anjo voou.

45 Como ele ficou sem guia naquela ponte e os animais terríveis do rio já estavam levantando a cabeça para devorá-lo se ele caísse, estava tão aterrorizado que não sabia absolutamente o que fazer, porque não podia ir nem para trás nem para frente. 46 Por isso, posto em tamanha tribulação e perigo, abaixou-se e abraçou a ponte. Vendo que não havia outro refúgio a não ser Deus, começou a invocar do fundo do coração o Senhor Jesus Cristo, para que, por sua santíssima e piedosíssima misericórdia, se dignasse socorre-lo. 47 Depois que rezou, pareceu-lhe que estava criando asas. Ficou muito contente com isso, esperou que as asas crescessem pensando em atravessar o rio e ir para lugar aonde o anjo tinha voado.

48 Mas, como teve muita pressa de voar, porque as asas ainda não estavam bem crescidas, caiu em cima da ponte, e todas as penas caíram também. Ficou aterrorizado, abraçando de novo a ponte e implorando em lágrimas a misericórdia de Cristo. 49 Pareceu-lhe que estava criando asas outra vez. Mas, como antes, teve muita pressa de voar e caiu de novo em cima da ponte. Como antes, as penas caíram outra vez.

50 Percebendo que não podia voar bem por causa da precipitação, disse em seu coração (cfr. Sl 9,6.11 (9,27.32)): “Se eu criar asas uma terceira vez, vou esperar tanto tempo que não vou falhar no vôo”. 51 Pareceu-lhe que, entre a primeira, a segunda e a terceira vez que criou asas, tinha esperado mais do que cento e cinqüenta anos. 52 Quando lhe pareceu que as asas estavam otimamente prontas, elevou-se nessa terceira vez valentemente no alto, e voou até a morada para onde o anjo tinha voado.

53 Mas, quando chegou à porta da casa admirável, disse-lhe o porteiro: “Quem és tu, que chegaste até aqui?”. Respondeu: “Sou um frade menor”. Ele disse: “Espera que vou trazer São Francisco, para ver se te reconhece”. 54 Mas, enquanto o outro foi buscar São Francisco, ele começou a olhar os muros daquela cidade admirável. Os muros tinham uma claridade tão grande que ele enxergava claramente tudo que faziam lá dentro e os admiráveis coros dos anjos que lá estavam.

55 Quando estava olhando, viu o bem-aventurado Francisco, o santo Frei Bernardo, Frei Egídio e tamanha multidão de santos e santas de Deus que tinham seguido os seus vestígios, que parecia não ter número.

56 Quando São Francisco chegou perto dele, disse ao porteiro: “Deixa-o entrar, porque é um de meus frades”. E São Francisco levou-o lá para dentro, mostrando-lhe muitas maravilhas. 57 Logo que entrou, sentiu tanta consolação e doçura que se esqueceu de todas as tribulações que tinham acontecido antes, como se nunca tivesse estado no mundo.

58 Depois disso, São Francisco disse: “Filho, tens que voltar para o mundo e ficar lá sete dias, nos quais prepara-te o melhor que puderes. Porque, depois de sete dias, eu irei te buscar, e então virás comigo para este lugar admirável dos bem-aventurados”.

59 São Francisco estava vestido com um manto todo enfeitado de belíssimas estrelas, e seus cinco estigmas eram como cinco esplendidíssimas estrelas, que refulgiam de tanta luz que pareciam iluminar toda aquela cidade com os seus raios. 60 Frei Bernardo tinha na cabeça uma coroa de estrelas (cfr. Ap 12,1) belíssima. Frei Egídio também estava todo enfeitado com uma luz admirável. E reconheceu lá, gloriosos com o bem-aventurado Francisco, muitos outros santos frades menores, que nunca vira.

61 Quando foi dispensado, o frade voltou para o mundo, ainda que de má vontade. Quando voltou, os frades estavam tocando para Prima. Não tinha passado tempo maior que das matinas à aurora da mesma noite, ainda que lhe parecesse que lá estivera por muitos anos. 62 O próprio frade falou ordenadamente da visão e do termo de sete dias para o seu guardião. E logo começou a ficar com febre.

63 No sétimo dia, São Francisco veio com uma gloriosa comitiva de santos e levou para o gozo dos bem-aventurados a alma do frade, purificada na visão sob a direção do anjo.

Para o louvor de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.