A descoberta do monte Alverne
1 Francisco, o fidelíssimo servo e amigo de Jesus Cristo, honrava o seu Criador por si e pelos outros, com todos os esforços que podia. Por isso o nosso graciosíssimo e benigníssimo Salvador, o Senhor Jesus Cristo, retribuía a glória de quem o honrava, porque quem me glorificar, eu o glorificarei (cfr. Mt 10,32), diz o Senhor. 2 E por isso, onde quer que São Francisco fosse, era recebido por todos com tanta veneração, que quase todo mundo acorria para o homem tão admirável. 3 Assim, quando se aproximava de regiões, castelos ou vilas, julgava-se feliz quem pudesse vê-lo, ou tocá-lo.
4 Uma vez aconteceu que, antes de ter os estigmas do Salvador, o bem-aventurado Francisco saiu do vale de Espoleto e foi para a Romagna. Nessa mesma viagem, quando chegou a um castelo de Montefeltro, celebrava-se aí uma grande solenidade de consagração de um novo cavaleiro. 5 Quando o santo pai soube disso pelos moradores, disse a Frei Leão, seu companheiro: “Vamos a eles porque, com o auxílio de Deus, vamos fazer algum proveito no meio deles”. Pois nessa solenidade estavam presentes muito nobres, reunidos de diversos lugares. 6 Entre eles havia um senhor da Toscana, chamado Orlando, muito rico e nobre, que, por causa das coisas admiráveis que tinha ouvido sobre São Francisco, concebera uma grande devoção por ele e tinha a maior vontade de vê-lo e ouvi-lo.
7 Mas São Francisco, quando entrou naquele já saboreado castelo, para ser mais comodamente ouvido pela multidão, subiu em cima de um muro e pregou de lá para o povo que o rodeava. 8 E propôs em língua vulgar este tema: Tão grande é o bem que espero, / que pra mim toda pena é um prazer”.
9 E o Espírito Santo manifestou-se pela sua língua nessas palavras, devotamente, e nas falas divinas, provando-as pelas penas dos mártires, pelos martírios dos apóstolos e duras penitências dos confessores e as numerosas tribulações dos santos e santas, de modo que todos estavam com a mente suspensa, como se estivessem ouvindo um anjo. 10 Estava entre eles o senhor Orlando, alegre pela desejada presença de São Francisco e tocado por sua pregação maravilhosa, decidiu conversar com São Francisco sobre a salvação de sua alma.
11 Então, acabada a pregação, disse a São Francisco: “Pai, gostaria pôr em ordem contigo algumas coisas sobre a salvação de minha alma”. 12 Mas São Francisco, bem temperado pelo sal da discrição (cfr. Cl 4,6), disse: “Senhor, vai esta manhã e honra os teus amigos, que te convidaram para a festa; depois do almoço vamos conversar quanto quiseres”. 13 Ele concordou e voltou depois do almoço. Com São Francisco, pôs totalmente em ordem a salvação de sua alma. No fim, disse: “Frei Francisco, em tenho um monte na Toscana, muito devoto e bastante solitário, chamado Monte Alverne. 14 É muito apropriado para os que desejam levar uma vida solitária. Se o monte agradar a ti e aos teus companheiros, eu vo-lo darei com a maior boa vontade, pela salvação da minha alma”.
15 Ora, São Francisco desejava com o maior afeto encontrar lugares solitários onde pudesse entregar-se mais comodamente à contemplação, de modo que, quando ouviu a oferta, respondeu, depois de louvar primeiro a Deus, que por seus fiéis cuida de suas ovelhas, e de dar graças ao senhor Orlando: 16 ”Senhor, quando voltares para casa em tuas terras, vou mandar a vós dois frades dos meus companheiros, e vós lhes mostrareis o monte. Se parecer adequado, aceito tua oferta com a maior boa vontade”. O referido senhor Orlando morava em um castelo perto de monte Alverne.
17 Por isso, quando acabou a solenidade e o senhor voltou para sua casa, São Francisco mandou dois de seus companheiros, para procurá-lo. 18 Mas, como aquelas terras lhes eram desconhecidas, tiveram grande dificuldade para encontrar o castelo do referido senhor. Mas quando chegaram ao senhor, foram recebidos por ele com caridade e com toda alegria, como se fossem anjos de Deus.
19 Juntando-se a quase cinqüenta homens fortemente armados, por causa das feras, foram levados ao monte Alverne. 20 Providenciando e procurando onde pudessem preparar um lugar para morar, lá acharam afinal uma pequena planície, onde decidiram morar, em nome do Senhor. 21 Os seculares que levaram os frades cortaram com as espadas ramos de árvores e construíram com eles um tugúrio.
22 Depois de ter ocupado aí um lugar, com a licença do senhor, os frades foram buscar São Francisco em nome do Senhor Jesus Cristo, para o levarem para lá, anunciando que o lugar era bem retirado e adequado para a contemplação divina. 23 São Francisco, ouvindo isso com alegria e dando louvores a Deus, tomou consigo Frei Leão, Frei Masseu e Frei Ângelo, que fora um nobre cavaleiro e, com eles, foi para o referido lugar e monte.
24 Quando estava subindo pelo monte com os companheiros benditos e parou para descansar um pouquinho ao pé de um carvalho, que ficava um pouco distante do lugar, uma multidão de pássaros variados afluiu sobre o bem-aventurado Francisco, voando de todos os lados, gárrulos, alegres e batendo as asas. 25 Alguns pousavam sobre a sua cabeça, outros sobre os ombros, uns sobre os joelhos, outros em cima das mãos do santo pai.
26 Vendo essa maravilha nova, o bem-aventurado Francisco disse a seus companheiros: “Creio, meus caríssimos irmãos, que é do agrado de nosso Senhor Jesus Cristo que tomemos este lugar neste monte solitário, onde nossos irmãos passarinhos demonstram tanta alegria pela nossa chegada. 27 E levantando-se, todo alegre no espírito, foi para o lugar, onde ainda não havia nada a não ser um tugúrio pobrezinho, feito de ramos de árvores. 28 Depois de ter escolhido aí um lugar solitário, onde pudesse orar afastado dos outros, fez para si uma celazinha bem pobre em um dos lados do monte, e ordenou aos frades que nenhum se aproximasse dele nem permitissem que fosse alguma outra pessoa a não ser Frei Leão, porque tencionava fazer ali a quaresma do arcanjo Miguel
29 Mas também impôs a Frei Leão que não fosse até ele a não ser uma vez por dia com pão e água e uma vez de noite, na hora das Matinas. 30 Nessa hora devia aproximar-se sem falar nada, mas só propondo ou proferindo o seguinte: Senhor, abre os meus lábios. E se o santo respondesse de dentro: E minha boca anunciará o vosso louvor (Sl 50,17), diriam juntos as Matinas. 31 Mas, se não respondesse lá de dentro, Frei Leão devia afastar-se imediatamente. E São Francisco mandou fazer isso porque estava às vezes em tamanho êxtase da mente que não podia falar por um dia e por uma noite, tão absorto estava em Deus. Frei Leão observava com a maior atenção esse preceito.
32 Entretanto, embora Frei Leão guardasse fielmente o santo silêncio, espiava quanto podia o que o santo estava fazendo. E algumas vezes descobria o santo fora da cela, elevado tão alto no ar que podia tocar os pés dele. 33 Então abraçava-os e os beijava chorando e dizendo: “Deus, sede propício a mim que sou pecador (Lc 18,3) e, pelos méritos deste homem tão santo, fazei que eu possa encontrar tua santíssima misericórdia”.
34 Algumas vezes encontrou-o elevado do chão até a metade das faias, pois havia lá muitas dessas árvores, de altura muito grande. Outras vezes encontrou-o tão elevado no ar que mal podia vê-lo. 35 Então Frei Leão ajoelhava-se e se estendia inteiro no chão, no lugar de onde São Francisco tinha sido elevado ao ar quando estava orando. Rezando aí, Frei Leão sentia as maiores visitas da graça divina, também pelos méritos do santo pai, como antes. 36 E por ter observado muitas vezes essas coisas a respeito do santo, Frei Leão tinha tanta devoção por ele que, com muita freqüência, observava com santa astúcia, por noites inteiras, os esforços ocultos de São Francisco.
37 Então aconteceu que, na referida quaresma, Frei Leão foi chamar São Francisco para as matinas, como costumava. 38 E como entrou na cela do santo dizendo: Senhor, abre os meus lábios (Sl 50,17), como tinha sido mandado antes, e São Francisco não respondeu, percebeu, à luz do luar, cujo esplendor entrava pela porta, que o santo não estava na cela. 39 Achou que ele estava orando lá fora e, procurando pelo mato aqui e ali, ouviu-o falando. Aproximou-se para ouvir o que ele dizia e, ajudado pela luz da lua, viu o santo de joelhos, com o rosto voltado para o céu e de mãos levantadas para Deus e dizendo estas palavras: 40 ”Que sois vós, meu dulcíssimo Deus, e que sou eu, vermezinho (cfr. Is 21,7) e pobre servo vosso?”. Repetia sempre isso, sem dizer outra coisa.
41 Olhando, Frei Leão viu uma chama de fogo (cfr. Ex 3,2) belíssima e bem resplandecente e agradável aos olhos, que vinha descendo do mais alto dos céus até a cabeça de São Francisco. 42 Da chama saía uma voz que falava com São Francisco; e São Francisco respondia a quem falava.
43 Mas Frei Leão, com medo, retrocedeu, para não impedir o santo em tão admiráveis segredos, de modo que não podia ouvir que palavras estava dizendo. 44 Mas viu que São Francisco estendeu sua mão três vezes para a chama. Quando a chama se afastou, Frei Leão começou a voltar devagarzinho, para não ser escutado pelo santo.
45 Mas São Francisco ouviu o ruído de seus pés por causa de algum galho do mato, e disse: “Eu te mando, quem quer que sejas, pela força do Senhor Jesus Cristo, que fiques parado e não te movas do lugar”.
46 Frei Leão parou imediatamente por causa da palavra do santo, e disse: “Sou eu, pai”. E uma vez Frei Leão contou que ficou tão aterrorizado de medo que, se a terra se abrisse, ali se esconderia com a maior boa vontade. 47 Pois temia que, se ofendesse o santo, ia perder sua amável amizade. Pois tão grandes eram o amor e a confiança que tinha no santo que achava que não ia conseguir viver sem ele. 48 Por isso, sempre que alguns falavam sobre os santos, Frei Leão dizia: “Caríssimos, todos os santos são grandes, mas São Francisco também é dos grandes por causa das maravilhas que Deus faz através dele”. E falava isso com mais boa vontade sobre ele do que sobre os outros. Por isso não é de admirar se ficou assustado com sua voz.
49 Reconhecendo-o, o santo disse: “Frei Ovelhão, por que vieste aqui? Eu não te disse tantas vezes que não me ficasses espionando? Diga-me por experiência se viste alguma coisa?”.
50 Ele respondeu: “Pai, eu te ouvi falando, dizendo e orando freqüentemente com muita animação: Que és tu, meu dulcíssimo Deus, e o que sou eu, vermezinho e pequeno servo teu? 51 E então vi uma chama de fogo (cfr. Ex 3,2) descendo do céu, falando contigo, e que tu estavas respondendo muitas vezes, e estendeste a mão pela terceira vez. Mas não sei o que dizias”. 52 Ajoelhando-se com a maior reverência, Frei Leão rogou com muita reverência ao santo, dizendo: “Eu te rogo, pai, que me expliques as palavras que ouvi e me contes também as que não ouvi”.
53 E São Francisco, como amava muito Frei Leão por causa de sua pureza e mansidão, disse-lhe: 54 “Ó Frei Ovelha de Jesus Cristo, naquilo que escutaste e viste, foram-me abertas duas luzes, uma sobre o conhecimento do Criador e outra sobre o conhecimento de mim mesmo. 55 Pois quando eu dizia: Que és tu, Senhor, e que sou eu, estava em certa luz de contemplação, na qual via o abismo da infinita bondade divina e o abismo deplorável de minha vileza. 56 Por isso, eu dizia: Que és tu, Senhor, sumo bem, sumo sábio, sumo clemente, para visitares a mim, que sou vil e um vermezinho pequeno, abominável e desprezível. 57 Aquela chama era Deus, que me falava como a Moisés, na chama (cfr. Ex 3,1.2); e entre outras coisas que Deus me disse, pediu que lhe fizesse três ofertas.
58 Eu lhe respondi: Senhor, eu sou todo teu e não tenho nada a não ser as calças, o cordão e a túnica; e isso também é teu. Que poderei ofertar como um dom à tua grandeza? Pois são teus o céu e a terra, o fogo e a água são teus com tudo que neles está. 59 Quem é que tem alguma coisa que não seja tua? Pois, quando te ofertamos alguma coisa, devolvemos o que é teu. Então, que posso te oferecer, Senhor Deus, rei do céu, da terra e de todas as criaturas?
60 Então Deus me disse: Põe tua mão no teu regaço e me oferece tudo que encontrares. 61 Quando eu fiz isso, encontrei uma moeda de ouro tão grande, tão brilhante e bonita que nunca verás neste mundo, e então a ofereci a Deus.
62 Mas Deus tornou a dizer: Faz-me outra oferta, como antes. E eu disse a Deus: Senhor, eu não tenho, nem quero, nem amo a não ser a ti, e por teu amor desprezei o ouro, desprezei tudo. 63 Por isso, se encontrar mais alguma coisa em meu regaço, foste tu que o puseste e eu vou devolver a ti, doador de tudo. Fiz isso três vezes. Quando acabei de ofertar os três dons, ajoelhei e bendisse a Deus, que me deu o que eu pude ofertar.
64 E imediatamente me foi dado entender que aquela tríplice oblação figurava a obediência de ouro, a altíssima pobreza e esplendidíssima castidade, que, por sua graça, Deus me deu de observar tão perfeitamente que minha consciência não me repreende em nada. 65 E, assim como eu punha a mão no bolso, tirava e ofertava aquelas moedas para o próprio Deus, que lá as colocara, da mesma forma Deus me pôs na alma uma capacidade de louvá-lo e magnifica-lo de boca e de coração por todos os bens que me concedeu por sua santíssima bondade.
66 Então foram essas as palavras que ouviste e porque me viste estender as mãos. Mas toma cuidado, Frei Ovelhão, para não me continuares espionando. Volta para tua cela com a bênção de Deus, e que tenhas um cuidado solícito por mim. 67 Dentro de poucos dias, Deus vai fazer maravilhas tão estupendas neste monte, que todo o mundo vai ficar admirado. Fará algumas coisas novas que nunca fez a nenhuma criatura neste mundo”.
68 Então, Frei Leão se retirou muito consolado. Naquela mesma quaresma e naquele monte Alverne, perto da festa da Exaltação da Santa Cruz, Cristo apareceu na forma de um Serafim alado e como que crucificado, imprimindo tanto os cravos quanto os estigmas nas mãos, nos pés e no peito de São Francisco, como conta a sua legenda. 69 E apareceu de noite, com tanto esplendor, que iluminou vales e montes distantes ao redor melhor do que se a claridade do sol estivesse presente. Disso foram testemunhas todos os pastores que faziam a vigília com seus rebanhos (cfr. Lc 2,8), naquela região.
70 Mas ainda não se sabe tudo sobre o porquê apareceram os estigmas em São Francisco; mas, como ele mesmo revelou a seus companheiros, isso vai passar para o futuro como um grande mistério. 71 Frei Tiago de Massa ouviu essa história da boca de Frei Leão; e Frei Hugolino do Monte Santa Maria, da boca do referido Frei Tiago. E eu, que estou escrevendo, ouvi da boca de Frei Hugolino, homem bom e digno de confiança.
Para o louvor de N. S. Jesus Cristo. Amém.