Actus beati Francisci et sociorum eius - Capítulo 46

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Como um grande tirano, vendo um dos compa­nheiros do bem-aventurado Francisco elevado no ar até o alto de seu palácio, se converteu e se tornou frade menor pela prega­ção desse irmão.

1 Este foi um sinal evidentíssimo de que a Ordem do bem-aven­turado Francisco foi fundada por Deus, porque, logo que come­çou a multiplicar-se, chegou quase até aos confins da terra. 2 Por isso, São Francisco, esforçando-se por conformar-se a Cristo em tudo, enviava seus irmãos dois a dois a pregarem em todas as regiões, 3 e o Senhor fazia por meio deles coisas tão admiráveis que quase por toda a terra se estendeu a voz deles, e as suas palavras até aos confins do orbe terrestre (SI 18,5).

4 Por isso, aconteceu uma vez que, dois daqueles novéis discí­pulos do bem-aventurado pai, dirigindo-se a regiões desco­nhecidas, chegaram a uma aldeia cheia de homens péssimos. 5 Nela havia. também um grande tirano, muito cruel e ímpio, como chefe e comandante de todos aqueles péssimos e assal­tantes. Ele era, até, nobre de nascimento, mas péssimo e ignó­bil de costumes.

6 Como os dois ditos irmãos, aflitos pela fome, pelo frio e pelo cansaço, em sua simplicidade, tinham chegado tarde ao castelo, como cordeiros entre lobos (cf. Lc 10,3), pediram por um mensageiro ao tirano, senhor do castelo, que os recebesse na hospedaria naquela noite por amor do Se­nhor Jesus Cristo. 7 Ele, inspirado por Deus, recebeu-os bem e demonstrou muita compaixão e, cortesia. Mandou acender para eles um grande fogo e preparar a mesa à moda dos nobres.

8 Estando os irmãos e todos os outros à mesa, um dos frades, que era sacerdote e que tinha especial dom de falar de Deus, deu-se conta de que ninguém dos que ali estavam sentados tratava ou falava algo de Deus ou da salvação da alma, 9 mas apenas de assaltos, mortes e muitos outros males que tinham perpetrado em tal ou tal lugar; e que se rejubilavam pelas piores coisas e pelas impiedades cometidas por toda parte.

10 Por isso, terminada a refeição corpo­ral, o frade, desejando restaurar seu hospedeiro e os de­mais com o alimento do céu, disse ao senhor: “Senhor, mostrastes-nos grande cortesia e caridade; e por isso, seríamos muito ingratos, se não tratássemos de vos retribuir com algumas coisas que são boas diante de Deus. 11 Pedimos, então, que mandeis reunir a família inteira para que nós, pelos benefícios corporais recebidos, recompensemos com bens espirituais”. Consentindo com os pedidos deles, o dito senhor mandou que to­dos se reunissem diante dos frades.

12 E o frade começou a falar da glória do paraíso: como há lá uma alegria eterna, a companhia dos anjos, a segurança dos bem-aventurados, a glória infinita, a profusão dos tesouros celestes, a vida perpétua, a luz inenarrável, a paz imperturbável, a salvação incorruptível, a presença de Deus, todo bem e ne­nhum mal. 13 Mas o homem, por causa dos pecados e de sua miséria, perde tantos e tão grandes bens e, conquista o inferno, onde há dor e tris­teza eterna, a companhia dos demônios, das serpentes e dos dra­gões, onde há miséria infinita e a vida sem vida, trevas palpáveis e a presença de Lúcifer, 14 onde há perturbação e ira, fogo eterno e gelo, vermes e raivas, fome e sede, onde há morte sem morte, ge­midos e lágrimas, ranger de dentes (cf. Mt 8,12) e eternidade de tormentos; aí todo o mal e a ausência de todo bem!

15 "E, segundo entendi, todos vós correis precipitadamente para tão grandes ma­les; pois em vós não aparece nada de boa obra ou de boa palavra. 16 Por isso eu vos aconselho e admoesto, caríssimos, a que, pelas coisas vis do mundo e pelos prazeres da carne - coisas todas que passam como sombra (cf. Sb 5,9) — não percais aqueles sumos bens celestes que vão durar para sempre, e a que não vos precipiteis nessa corrida para tão grandes e acerbos tormentos”.

17 E, dito isso pelo frade na virtude do Espíri­to Santo, o senhor do castelo, tocado interiormente e compungido no coração, prostrou-se aos pés do irmão; e ele, com todos os ou­tros, começou a chorar muito amargamente, rogando e pedindo ao irmão que o dirigisse no caminho da salvação. 18 Confessou-se ao frade com muitas lágrimas e íntima compunção, e o frade disse que era necessário, para redenção de seus pecados, peregrinar pelos santuários, macerar-se por jejuns, fazer vigília na oração e insistir em esmolas bem generosas e outras obras de piedade.

19 O senhor disse: “Pai caríssimo, eu nunca saí desta região, não sei rezar o Pai-nosso nem outras orações; impõe-me outra peni­tência”. 20 O santo frade respondeu: “Caríssimo, quero ser teu fiador e, pela caridade de, Deus interceder por teus pecados ao Senhor Jesus Cristo, para que tua alma não pereça. 21 Neste momento, não quero que faças outra penitência a não ser trazer, com tuas próprias mãos e nesta noite, um pouco de palha onde eu e meu companheiro possamos descansar”.

22 Ele trouxe a palha com alegria e preparou cuidadosamente o leito em um quarto onde ardia a luz. E, vendo esse senhor que aquele irmão proferira palavras tão santas e virtuosas, com­preendeu que era um homem santo, 23 e resolveu em seu coração investigar diligentemente o que ele faria naquela noite. E viu que o dito irmão, de noite, se pôs na cama, 24 mas, ao julgar que todos dormiam profundamente; levantou-se no opor­tuno silêncio da noite e, estendendo as mãos ao Senhor — pela fi­ança feita — e rezando por ele, pedia indulgência por seus pecados.

25 E eis que durante a oração o irmão foi elevado até o alto do palácio e aí, no ar, fez tão grande lamento e pranto, pe­dindo indulgência pelos pecados referido senhor, que dificilmente se viu, algum dia, homem que chorasse tão cordialmente seus ca­ros consanguíneos ou amigos defuntos como este irmão pelos pecados dele. 26 E, naquela noite, foi elevado três vezes no ar; sempre com piedoso lamento e com lágrimas de compai­xão. E o senhor, observando às escondidas todas essas coisas, via e ouvia o caridoso lamento e os compassivos soluços das lágrimas. 27 Por isso, logo de manhã, prostrou-se aos pés do frade e com lágrimas de compunção rogava que o dirigisse ao caminho da salvação, firmemente preparado para tudo o que mandasse.

28 Então, a conselho do santo frade, vendeu tudo o que tinha, restituiu o que devia ser restituído e distribuiu todos os demais bens aos pobres (cf. Lc 19,8), segundo o santo Evangelho, e, ofe­recendo-se a Deus, entrou na Ordem dos Frades Meno­res e com louvável perseverança, observando o propósito, morreu numa vida santa. 29 Também os seus camaradas e companheiros das antigas iniquidades, compungidos no coração, mudaram a vida para melhor. Assim frutificou a santa simplicidade daqueles frades, não pregando sobre autores ou sobre Aristóteles, mas sobre as penas do inferno e a glória do paraíso, com brevidade de pala­vra, como diz a santa regra.

Graças a Deus! Amém.